Fazendo uma generalização bem grosseira, metade dos eleitores de Trump pode ser colocada naquilo que eu chamo de balaio de deploráveis. Correto? Racistas, sexistas, homofóbicos, xenofóbicos, islamofóbicos, e por aí vai.
Fala da candidata à presidente dos Estados Unidos, Hillary Clinton, na sexta-feira dia 9 de setembro, em um evento de arrecadação de fundos para sua campanha
Tínhamos certeza de que nós, e a nossa civilização, tínhamos saído da infância e abandonado os mitos de Deus, dos anjos e do paraíso. Tínhamos a medicina moderna, a penicilina, os aviões a jato, o Estado do bem-estar social, as Nações Unidas e a “ciência”, que explicava tudo o que precisava ser explicado. As pessoas ainda morriam, é verdade, mas normalmente na surdina e dopadas até chegarem a um estado de passividade indolor. […] As dores da morte tinham sido abolidas, assim como a maior parte das dores da vida.
Trecho do livro “A Raiva contra Deus – como o ateísmo levou-me à fé”, do jornalista britânico Peter Hitchens (1951-
Muitas pessoas jovens sentem que sua memória foi destruída. É o segredo constrangedor da minha geração. Nós dificilmente lembramos de algo. Brincamos sobre termos Alzheimer precoce, geralmente com um tom de ansiedade real. Sabemos que quando tentamos lembrar de um detalhe – um caminho, uma frase, um fato histórico – o desempenho da mente não é o esperado no momento crítico. Então nos valemos dos nossos telefones, que são muito mais confiáveis.
Trecho do artigo “Cabeças nas nuvens” da jornalista britânica Lara Prendergast
Prezados leitores, permitam-me apresentar-lhes Peter Hitchens, irmão de Christopher Hitchens (1949-2011), que talvez vocês conheçam, pois esteve aqui no Brasil em 2006, na Feira Literária de Paraty. Christopher era um ateu militante, que em 1995 lançou um livro criticando ferozmente Madre Teresa de Calcutá, canonizada pelo Papa Francisco no dia 4 de setembro passado. Não cabe aqui explorar os detalhes das ideias de Christopher, pois meu foco é no seu irmão, que tomou um caminho totalmente oposto, como mostra o nome da obra citada acima e publicada em 2010.
Em seu opúsculo, Peter fala da sua trajetória de adolescente rebelde que se insurgiu contra a religião como um ato de liberdade, para depois voltar a ela, depois de sua experiência como correspondente no Leste Europeu e na Rússia, onde ele viu na prática o socialismo, regime antirreligioso por excelência. Quando queimou a Bíblia que havia ganho dos pais, em 1967, Peter pensava que uma pessoa inteligente e bem-educada não poderia ter nenhuma fé religiosa, porque o progresso material, tecnológico e social que o Ocidente havia atingido fazia com que a ideia de recorrer a Deus para alívio de nossas angústias existências fosse totalmente inútil. Depois de um longo caminho, Peter, ao contrário do irmão, que até morrer de câncer manteve-se incrédulo, voltou a frequentar a igreja e ao final do seu livro lamenta que provavelmente o próximo rei da Inglaterra será coroado na primeira cerimônia não explicitamente cristã em mais de 1.000 anos.
Meu objetivo não é defender ou atacar a decisão de Peter Hitchens. No final das contas, o sentimento religioso é algo que certas pessoas têm, e outras não têm, e portanto, escolher Deus ou o Diabo é uma questão de consciência individual. Independentemente da opção de cada um, não podemos negar que o fato de no Ocidente pós-cristão a religião não ser mais tão onipresente como era teve consequências sobre a sociedade. Substituímos a ideia de que todos somos pecadores perante Deus pelo conceito de que somos diversos e temos direitos iguais de sermos diferentes. Cada indivíduo, assim como tem o direito de escolher produtos em um supermercado, colocá-los no carrinho e passar pelo caixa, tem o direito de escolher suas próprias crenças, sua própria sexualidade, suas próprias opções políticas, mesmos que elas sejam contrárias àquelas dos pais, dos amigos, da comunidade. Esta é uma das pedras de toque do sistema ocidental, que colocou de lado o cristianismo, o fator determinante da sua cultura por pelo menos 1.500 anos.
Assim como levou séculos para os ensinamentos de Cristo deixarem de fazer a cabeça das pessoas como fazia antes, demorará outros séculos para que ao menos no Ocidente as sociedades voltem a considerar a religião como algo determinante da vida das pessoas. Ler a Bíblia fazia parte da educação das pessoas, era na Bíblia que as pessoas procuravam respostas sobre o que era o certo e o que era o errado, sobre que virtudes cultivar, que vícios evitar e as consequências de não trilharmos o caminho da retidão. O paradigma de educação no Ocidente, pelo menos até o advento do Iluminismo, que começou a destruir o edifício da religião cristã, consistia em uma autoridade, seja o professor, o pai, a mãe, ou o padre, ler um trecho da Bíblia para os pequenos para que estes absorvessem as verdades ali reveladas e as repetissem, aprendendo também o vernáculo em que aquelas lições eram expressas.
As crianças do século XXI ao contrário, educam-se trocando mensagens pelo celular, procurando informações na internet, de tal forma que esta transformou-se em uma extensão do cérebro, como descreve Lara Prendergast em seu artigo sobre como a tecnologia tomou conta da mente. Saber histórias da Bíblia de cor, saber quem era Jacó, quem era Jó ou quem foi Jesus Cristo não é mais necessário, se não souber, basta clicar no tablet ou no I-phone e procurar no Google ou na Wikipedia. Não é só o meio de transmissão de conhecimento que mudou, o próprio conteúdo também. Mesmo que consideremos uma criança no Brasil que tenha pais evangélicos, o que corresponde a 22% dos brasileiros, e teoricamente tenham mais familiaridade com a Bíblia, isso não significa que os filhos aprenderão de maneira mais sistemática ou perene do que os filhos de pais que não dão tanta importância à religião.
Tanto as crianças criadas em meios religiosos quanto as criadas em meios não religiosos terão a mesma dependência da memória de curto prazo, a mesma amnésia digital daqueles habituados à busca instantânea de informações que logo serão esquecidas ou armazenadas em algum arquivo que nunca será acessado depois. Imaginar que jovens que entram em contato com o mundo dessa maneira terão foco ou concentração suficiente para ouvir uma autoridade falar sobre o que é certo ou errado é pedir muito a indivíduos que reagem rápido demais para terem a capacidade e a paciência para deter-se sobre lições de qualquer espécie, morais ou não.
Tudo isso para dizer que se para Peter Hitchens foi possível resgatar seu passado religioso e voltar a crer que há algo maior a que nossa individualidade deve se submeter, é difícil conceber que as novas gerações, imersas inteiramente na tecnologia e no modo de transmissão do conhecimento que elas estabelecem, possam submeter-se a ideia de hierarquia que as religiões, ao menos as monoteístas, pressupõem. Se antes as relações sociais estabeleciam-se por meio do crivo da autoridade, pois havia a maneira certa de lidar com as pessoas, estabelecida pela moral religiosa, no nosso mundo pós-religioso as relações são horizontais e fluidas, ditadas pelo contato proporcionado pelos meios tecnológicos, que pode desafazer-se no próximo momento.
Em que pese Hillary Clinton ter-se desculpado no dia seguinte ao das declarações polêmicas reproduzidas na abertura deste artigo, não há como negar que sua generalização trata de uma questão importante. Se não há nenhum ponto de contato entre os diferentes grupos da sociedade, viramos um balaio de gatos, um conjunto de grupos e grupelhos que momentâneamente podem unir-se, como estão fazendo agora em torno de Donald Trump. Quem garante que se, ele for eleito, e uma vez o inimigo comum derrotado, as facções não briguem entre si?
Prezados leitores, em um mundo pós-religioso a diversidade veio para ficar e reinar para o bem e para o mal. Se antes ela era simplesmente um convite à tolerância a quem pensasse um pouco diferente, hoje ela impõe que a sociedade divida-se em guetos, em compartimentos que por sua própria natureza são irreconciliáveis, já que não temos mais a moral religiosa como instrumento para abstrair e controlar as diferenças. A briga feroz nos Estados Unidos entre Hillary e Donald, as escaramuças pós-impeachment no Brasil mostram os desdobramentos dessa falta de valores fundamentais que nos unam na vida e na morte. Quem viver verá.