Com uma pontuação de 76, o Brasil tem um alto índice de aversão à incerteza – assim como a maioria dos países latino-americanos. Essas sociedades apresentam uma grande necessidade de regras e regimes jurídicos complexos para estruturar a vida. A necessidade do indivíduo de obedecer às leis, no entanto, é fraca. Se as regras não conseguem ser mantidas, novas regras são estipuladas. No Brasil, assim como em todas as sociedades em que é alto o índice de aversão à incerteza, a burocracia, as leis e as regras são muito importantes para tornar o mundo um lugar mais seguro de viver.
Trecho do relatório sobre o Brasil preparado pelo psicólogo social e antropólogo organizacional holandês Geert Hofstede, que avalia os países de acordo com a distância em relação ao poder, o individualismo, a masculinidade, a aversão à incerteza, a orientação de longo prazo e a indulgência
O plano A é o controle de despesas, o B é privatização, e o C, aumento de imposto. […] Teremos privatizações, concessões, outorgas, securitizações, etc. Elas virão de qualquer maneira.
Trecho de entrevista dada pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles ao jornal O Estado de São Paulo, e publicada em 10 de julho sobre as medidas de austeridade fiscal
Prezados leitores, permitam-me voltar a um tema do qual já tratei neste meu humilde espaço, mais precisamente em novembro de 2014, quando escrevi um artigo intitulado “Leis para que as queremos”: nossa obsessão em acreditar que novas leis são a salvação da lavoura nacional. O motivo do meu retorno é porque achei um gringo que corrobora esse achado que a qualquer brasileiro é óbvio: a sofreguidão com que elaboramos, promulgamos e, mais importante, desrespeitamos as leis. O gringo em questão é um holandês Geert Hofstede, nascido em 1928. Ele elaborou o primeiro modelo empírico das dimensões da cultura de cada país, que permitiu levar em conta os elementos culturais na cooperação, na comunicação e na economia internacionais, como informa o site do Professor Emérito da Universidade de Maastricht.
É óbvio, porque faz parte dos nossos mais arraigados valores, do nosso modo de pensar, de sentir e de reagir, e assim de difícil erradicação. Sai governo, entra governo, de esquerda ou de direita, corrupto ou honesto, a muleta é sempre a mesma, disfarçada como algo novo, por meio de um palavreado rebuscado, como “marco regulatório”, mas que é sempre vendido como a panaceia que vai nos abrir as portas da redenção política, social, econômica, cultural. Os novos donos do poder, que vieram para substituir o lulo-petismo enxovalhado pela Operação Lava Jato, já nos ofereceram seu leque de drogas miraculosas.
Há a Proposta de Emenda à Constituição estabelecendo um teto para o gasto público. Uma ideia sensata, diria genial. Genial porque com certeza conseguirá fazer-se respeitar como não o foi a Lei de Responsabilidade Fiscal, em vigor desde 2000. A LRF foi currada, sodomizada, estuprada, conspurcada, vitimizada, violentada de Norte a Sul do Brasil, sem dó nem piedade, por todos os entes da federação. A conta dessa orgia de depravação pagaremos por longos anos, mas o importante dessa experiência traumática para as contas públicas e o bolso dos contribuintes é a lição a tirar disso.
O problema não é que nossa pontuação no índice de Hofstede é de 44 em orientação de longo prazo e de 69 em distância em relação ao poder, que mede o quanto os membros menos poderosos das organizações ou instituições no país esperam e aceitam que o poder seja distribuído de maneira desigual. Tais traços culturais, que revelam a falta de meios que os brasileiros têm ao seu dispor de controlar efetivamente o que nossos dirigentes fazem, e a nossa pouca “capacidade de lidar com os desafios do futuro”, são irrelevantes. A razão por que a LRF não conseguiu fazer com que os gastos públicos fossem controlados e feitos de maneira a satisfazer o interesse público é uma mera tecnicalidade jurídica. A LRF é lei complementar, de posição inferior na hierarquia das leis àquela de que gozará uma emenda à Constituição, que é a Lei Maior. Em suma, se o comando de gastar modica e eficazmente tiver status de constitucional ele com certeza será respeitado.
Engraçado, estamos agora às voltas com uma polêmica a respeito dos tais sacrossantos preceitos constitucionais. Nosso egrégio Supremo Tribunal Federal tem-se mostrado especialmente confuso a respeito de um comando que à primeira vista parece ter um significado óbvio, o inciso 57 do artigo 5º da Constituição Federal que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Na prática isso significa que o réu tem direito de recorrer em liberdade, aliás significava até que em fevereiro, no calor das condenações em série do Juiz Sérgio Moro, o STF decidiu por sete votos a quatro que uma condenação no Tribunal de Justiça era suficiente para mandar à cadeia, mesmo sem sentença definitiva. Eis que no último dia 5 de julho o ministro Celso de Mello, monocraticamente, isto é, individualmente, mandou suspender a execução de mandado de prisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Ou seja, os ministros da Corte Suprema da Nação, postos contra a parede pela Operação Lava Jato, ainda não conseguiram decidir o que significa o tal do inciso 57, o que faz com que uma norma constitucional fique sem eficácia. Portanto, incluir algo na Constituição como forma de “blindagem” para usar uma palavrinha que agrada aos nossos governantes, não garante que todos respeitarão o comando. A blindagem é apenas uma muleta, que logo, logo, deixará de ser útil e será jogada em uma caçamba qualquer, talvez perto do Congresso Nacional quando construírem o sonhado shopping center por lá.
Outra das soluções velhas empacotadas como revolucionárias são os tais dos novos marcos legais. Teremos concessões, outorgas, privatizações, em suma um arcabouço jurídico original que será mais atraente para o setor privado pois permitirá retorno maior e mais garantido dos investimentos, melhores serviços, mais competição e criação de empregos com as obras de infraestrutura. Em suma, um círculo virtuoso proporcionado pelas novas leis que o governo de Michel Temer vai promulgar. Quem garante não é só o ministro da Fazenda, mas dona Elena Landau, a musa das privatizações de Fernando Henrique Cardoso.
Por outro lado, parte das novas leis sobre outorgas, concessões e privatizações servirá para burlar as leis antigas: Elio Gaspari, em sua coluna de 10 de julho no jornal O Globo, informa os leitores a respeito das benesses que estão sendo preparadas para os investidores privados: perdão de aluguéis de aeroportos devidos pelas concessionárias no valor de R$ 2,3 bilhões, extensão do prazo das concessões de rodovias, transferência da titularidade de imóveis e infraestrutura públicos às operadoras de telefonia. As concessionárias de rodovias cumpriram no máximo 40% do que foi estipulado no marco regulatório dos governos passados, e agora o governo de Michel Temer oferece novas leis que tornarão os negócios menos arriscados, eximindo-as de cumprir condições antes obrigatórias nos contratos administrativos celebrados com os entes públicos.
Será que o povo brasileiro terá o maná prometido pelos arautos do novo marco legal? É ver para crer se a venda dos ativos públicos gerará receitas suficientes para cobrir o déficit e nos oferecerá variedade de serviços e preços em regime de competição de mercado. Mas se tivermos que pagar 26 reais por um sanduíche de pão com queijo como tive que fazer em maio no maravilhoso Terminal 3 do Aeroporto de Guarulhos, então no governo pós-Temer com certeza o chefe do Executivo nos brindará com um novo pacote de Medidas Provisórias para acabar com os abusos.
Prezados leitores, de lei em lei, a gente vai levando essa chama, no caso a crença brasileira no poder de novas regras que substituam as velhas: não deixem de botar fé na Lei das Estatais, e torçam para que as medidas de combate à corrupção propostas pelos nossos heróis do Ministério Público sejam aprovadas logo. Afinal, para nós legislar é cultura.