Os gregos faziam uma distinção clara entre logos/ (‘relato, cálculo, explicação, história, razão, debate, discurso’, compare com ‘lógica’ e todas aquelas palavras terminadas em -logia’) e ergon (‘trabalho, feito, ação’). Para um grego, rejeitar o logos era rejeitar a expressão do pensamento; e assim acabar com qualquer possibilidade de as pessoas explicarem ou darem um motivo por que estavam pensando e agindo daquele modo; e assim impedir qualquer maneira de combatê-las – exceto, claro, pela força.
Trecho retirado do artigo “Espaço seguro na Atenas antiga”, escrito por Peter Jones, ex-professor de Estudos Clássicos na Universidade de Newcastle na Inglaterra
Em declamações frequentemente teatrais, alguns deputados fizeram uso da tribuna para aproveitar o tempo e as luzes da ribalta para enviar mensagens pessoais sem muita ligação com as manobras fiscais da Sra. Dilma Rousseff oficialmente censuradas.
Trecho retirado do artigo “Os 10 segundos de celebridade dos deputados brasileiros” publicado na versão eletrônica dojornal francês Le Monde em 18 de abril
Prezados leitores, quando eu era adolescente eu costumava passar minhas férias de verão em Saquarema, na região dos Lagos do Rio de Janeiro. O casal que nos hospedava tinha uma linda filha loira de 8 anos, que tinha um hábito que me irritava, mas do qual eu não podia reclamar, afinal estava hospedada na casa da menina. Às oito horas Danielle, era este seu nome, ligava a televisão para assistir ao desembarque de Xuxa da sua nave cantando BOM DIA AMIGUINHOS, JÁ ESTOU AQUI, TENHO TANTAS COISAS PARA NOS DIVERTIR QUERO OUVIR TODOS VOCÊS CONTAR ATÉ TRÊS… Danielle sempre dançava em frente à televisão ao som da música de abertura do Show da Xuxa e sempre me acordava. Talvez minha birra com a Xuxa venha daí, da lembrança das botas brancas da apresentadora pisando depois de “aterrissar” nos lares de milhares ou milhões de crianças que acompanhavam o ídolo todos os dias.
No dia 17 de abril de 2016 o programa da Xuxa veio-me à cabeça enquanto eu acompanhava o desenrolar da votação sobre a admissibilidade do impeachment da Presidente da República. Devo confessar que minha versão dos fatos está prejudicada porque eu apenas ouvi os deputados darem suas razões para o sim ou para o não. O sinal da TV a cabo em meu apartamento foi interrompido por volta das 8 da noite e fiquei sem televisão e sem internet. De qualquer forma, a razão pela qual relacionei o programa da Xuxa à votação do segundo processo de impedimento em menos de 30 anos em nossa Nova República foi porque ouvi tantos e tantos deputados agradecendo pais, ou votando em nome de filhos, filhas, netos nascidos e vindouros que não pude deixar de lembrar das crianças a quem Xuxa dava o microfone para mandar beijos a alguém. As crianças aproveitavam a oportunidade e desembestavam a enumerar rapidamente os recipientes dos seus beijos. A pressa era porque “tia” Xuxa cortava a fala das crianças já que precisava seguir o roteiro do programa.
Ontem, ao contrário, não havia um roteiro, afinal era a festa da democracia e os deputados puderam falar à vontade, apesar de que oficialmente tinham só 10 segundos para fazê-lo. Tanto falaram à vontade que o resultado saiu ao menos duas horas mais tarde do que o esperado. A princípio é louvável que os congressistas tenham se estendido tanto, o que mostra que explicaram seu voto exaustivamente. Será? Será que houve o exercício do logos grego de que fala Peter Jones, além dos beijinhos aos amiguinhos que estavam assistindo pela TV ou pelo I -phone ou ouvindo pelo radinho de pilha como esta que vos fala?
Houve a cuspida de Jean Wyllys do PSOL do Rio de Janeiro em Jair Bolsonaro, houve vociferações contra Eduardo Cunha, que foi chamado de gângster, e contra Michel Temer, que foi chamado de traidor. Houve até um deputado que se disse contra a Rede Globo e que por isso votou pelo impeachment, algo totalmente incongruente visto que a Vênus Platinada fez questão de transmitir a sessão do Congresso e para garantir audiência obrigou os times de futebol a reagendarem os jogos dos campeonatos estaduais. A Globo com certeza tinha certeza da vitória do sim, se não tivesse teria ignorado o evento, como ignorou os comícios pelas Diretas Já no longínquo 1984 e como ignorou a manifestação pró-Lula que aconteceu em São Paulo em 18 de março deste ano.
Muitos motivos, menos rocambolescos do que ser contra a Rede Globo, foram dados para o voto a favor do impeachment: os 10 milhões de desempregados, o fechamento de empresas devido à crise econômica, a fidelidade às diretrizes do partido, a necessidade de virar a página, a defesa dos trabalhadores de tal região ou cidade, a luta contra a tentativa de tornar o Brasil uma república bolivariana, evitar ofensas a Israel. Não lembro de nenhum dos deputados que tiveram seus 10 segundos ou mais de fama que usaram o microfone para expor o motivo de Dona Dilma Vana Rousseff ter cometido o crime de responsabilidade de que é acusada. Um dos deputados chegou a mencionar o artigo 85 da Constituição Federal, mas não foi além disso. Alguns dirão que a acusação específica já havia sido tratada por Janaina Conceição Pascoal e Miguel Reale, que certamente mencionaram em seu pedido de impeachment o artigo 10 da Lei 1.079. E além disso dirão que a acusação foi corroborada pelo relator do processo, Jovair Arantes, que da tribuna do Parlamento denunciou o atraso nos repasses do governo ao Banco do Brasil, ao BNDES e à Caixa, os quais tiveram que usar recursos próprios para pagar o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e o Plano Safra, significando na prática um empréstimo ao governo não previsto na lei orçamentária.
Tudo isso é verdade, mas permanece o fato de que pouquíssimos brasileiros acompanharam a acusação de Miguel Reale, a defesa de José Eduardo Cardoso ou a explanação de Jovair Arantes. O que a maioria de nós realmente acompanhou foi a votação propriamente dita, e o que ficou patente foi que as razões jurídicas, que certamente existem, eram irrelevantes para os 504 deputados que expressaram sua opinião ao microfone na frente do “titio” Eduardo Cunha. A própria frase Tchau Querida estampada nos cartazes dos favoráveis ao impeachment mostra que há uma antipatia pessoal à Presidente, ao seu jeito mandão, explosivo, à sua falta de capacidade de negociar. Em suma, explicações consistentes, com premissa maior, premissa menor e conclusão ficaram a cargo dos especialistas, que não decidiram nada, apenas deram a largada à corrida.
Quem decidiu foram deputados que, tanto no lado do sim quanto do não, mostraram que a nossa democracia, reiniciada em 1989 com as eleições diretas para Presidente, ainda é perigosamente frágil: vive não do diálogo entre partes que de boa fé tentam chegar a um consenso, após concordarem sobre aquilo que é motivo de discórdia, mas dos beijinhos, das frases de efeito, dos insultos regados a “Vossa Excelência”, das gozações pessoais, da maldade embutida no “Querida”, da ameaça explícita do “Estou de olho em você, Cunha!” ou da ameaça velada do próprio Cunha sorrindo com o canto da boca. Enfim, na nossa democracia tupiniquim, é tudo pessoal, nada é objetivo, tudo é ergon, nada é logos: neste 2016 uma das partes agiu com determinação e persistência e conseguiu derrotar a outra, atropelada pela velocidade dos acontecimentos e pela união cerrada dos seus oponentes. E claro, tudo regado a violações sistemáticas à nossa pobre língua, assediada e estuprada por nobres deputados que não sabem pronunciar as palavras e esquecem de usar o plural no calor da contenda.
Prezados leitores, oxalá que Dilma seja defenestrada em menos de seis meses. Não porque eu acredite na legitimidade ou na oportunidade do processo, longe disso. Mas porque quero varrer da minha memória até 2018 as provas irrefutáveis da qualidade sofrível da nossa representação política, motivo de chacota internacional. É este o estado da nossa democracia: tudo se resume a um “O Lula é um vagabundo, f.d.p.” como disse a mim uma amiga, e o mesmo certamente foi dito sobre Eduardo Cunha pela parte adversária. O único alívio da minha angústia existencial na noite de domingo foi que o Tiririca foi comedido e só disse sim ao microfone.