As crônicas da conquista formam uma literatura incrivelmente rica – uma literatura ao mesmo tempo fantástica e verdadeira. Por meio desses livros podemos redescobrir um período e um lugar, da mesma forma que os leitores da ficção latino-americana contemporânea descobrem a vida contemporânea de um continente. Do seu próprio modo, os primeiros cronistas foram os primeiros realistas fantásticos.
Trecho retirado do artigo “What Columbus wrought, and what he did not”, escrito por Mario Vargas Llosa a respeito da conquista da América Espanhola para a revista Harper’s e publicado na edição de dezembro de 1990
O Presidente Vladimir Putin afirma ter compartilhado dados dos serviços de inteligência russos sobre o financiamento do Estado Islâmico com seus colegas do G-20: os terroristas parecem ser financiados por 40 países, incluindo alguns Estados-membro do grupo. […] “Eu mostrei aos nossos colegas fotos tiradas do espaço e de aviões que demonstram claramente a escala do comércio ilegal de petróleo e seus derivados.”
Trecho retirado de um artigo publicado no site Russia Today sobre a coletiva de imprensa dada pelo presidente russo na cúpula dos países do G-20 em Antalya, na Turquia
Prezados leitores, eu que tenho uma atitude sempre rabugenta em relação à tecnologia, devo dar a mão à palmatória: sem ela não teria descoberto este maravilhoso texto escrito pelo escrito peruano Mario Vargas Llosa na época em que tentava vender-se como candidato a presidente para dar um choque de capitalismo no Peru e assim contribuir concretamente para a prosperidade do seu país natal. Bem, sabemos que ele deu com os burros n’água e perdeu para Alberto Fujimori. Como bom intelectual que é, Mario Vargas Llosa aproveitou sua fugaz experiência política para refletir sobre a América Latina em geral e sobre as raízes do nosso subdesenvolvimento secular e nesse artigo ele o fez com maestria. Tanto que confesso-lhes que tive vontade de chorar, pois as palavras dele calaram-me fundo.
Para aguçar a curiosidade de quem me lê, não me deterei sobre suas conclusões, mesmo porque elas não me interessam para os fins deste artigo, mas sobre os prolegômenos do ensaio, em que Llosa comenta sobre aqueles que testemunharam em primeira mão a conquista dos impérios inca e easteca pelos espanhóis e presenciaram o choque das diferentes culturas. Cronistas como o Frei Bartolomeu de Las Casas, Gaspar de Carvajal, o Padre Calancha e tantos outros ficaram tão estupefatos com aquele maravilhoso mundo novo que se lhes apresentava que seus relatos são eivados de exageros e fantasias. No entanto, para o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2010, como defensor apaixonado da ficção que é, os exageros e fantasias “frequentemente revelam mais sobre a realidada da época do que suas verdades factuais”. Isso porque um leitor atento dessas fantásticas crônicas, tal como o professor de Mario Vargas Llosa na Universidade de San Marco, o historiador Raúl Porras Barrenechea, perceberá o que os autores escondem, o que distorcem e o que revelam, e assim fazendo ele perscrutará os motivos que levaram os primeiros cronistas da América a serem tão pouco científicos em suas descrições. Descobrindo o duplo sentido da história da conquista, isto é, o sentido que o autor quis dar ao seu texto, e o sentido que o leitor consegue depreender, este chega à verdade ficcional, muito mais poderosa que a verdade objetiva dos fatos.
Seguindo a lição do mestre da literatura peruano, é este exercício que tenho humildemente tentado fazer a respeito dos atentados terroristas perpetrados em Paris na famigerada sexta-feira 13, em que 129 pessoas morreram e 352 ficaram feridas. Parto do pressuposto de que nós, pobres mortais, jamais teremos acesso à verdade dos fatos, tal como ocorreram. Os cronistas do século XVI criavam realidades fantásticas em parte porque não entendiam aquela cultura, aqueles povos, aquela natureza que se apresentava a seus olhos inocentes, e em parte porque tinham seus próprios valores cristãos que determinavam seu olhar. Os cronistas do século XXI, digo aqueles que nos contam aquilo que ocorre atualmente no mundo, têm a seu alcance dados de satélite, imagens televisivas, fotos de celulares, o que teoricamente lhes permitiria apresentar uma narrativa mais objetiva. No entanto, esses neo-cronistas também têm seus próprios valores, seus próprios interesses, e por isso escondem, distorcem e revelam aquilo que lhes convêm. Darei alguns pequenos exemplos desse comportamento digno do “realismo fantástico”.
Tal como ocorreu no episódio Charles Hebdo, um dos tais terroristas carregava identificação consigo, neste caso um passaporte sírio. Muito estranho tal comportamento: será desejo de revelar-se como um nacional em protesto contra uma guerra que já ceifou mais de 250.000 vidas? Por que carregar um documento que facilita a identificação dos perpetradores pelas forças de segurança e portanto da rede de apoio aos terroristas, que poderia ajudar na concretização dos próximos ataques? E por que o passaporte sírio é aparentemente uma duas únicas provas da participação do Estado Islâmico, a outra sendo um vídeo de confissão de autoria? Matar todos os terroristas, como fizeram os policias franceses é a melhor maneira de obter a verdade dos fatos? Um detalhe pouco divulgado na imprensa, quase escondido, é que na manhã do dia 13 foi realizada uma simulação de múltiplos ataques terroristas simultâneos, na qual tomaram parte paramédicos, policiais e bombeiros. Será mera coincidência? Além disso, o chefe dos serviços de inteligência da França esteve em Washington para reuniões com o chefe da CIA, John Brennan, duas semanas antes do ataques (minha fonte: Professor de Economia da Universidade de Ottawa, Michael Chossudovsky, escrevendo em 15 de novembro).
O passaporte sírio ajudou nossos fantásticos cronistas a elaborar o enredo: o culpado dos atos bárbaros é o Estado Islâmico e com isso, o Presidente Hollande decretou guerra ao ISIS, despachando para a Síria aviões de combate, declarando estado de emergência e propondo medidas para reforçar a segurança dos cidadãos. As cenas dos próximos capítulos envolveram capturas na Bélgica de participantes da rede terrorista. Como a França é membro da OTAN, estando em guerra ela pode pedir ajuda dos outros países para destruir o grupo. Mais um motivo para os pesos-pesados da geopolítica interferirem ainda mais em um país em que Paulo de Tarso, considerado um dos fundadores da igreja de Roma, teve, a caminho de Damasco, a visão de Jesus que o fez converter-se do judaísmo para o cristianismo. Se o que Putin diz é verdade e o ISIS financia suas operações contrabandeando petróleo para países da Europa, a indignação do Ocidente em relação aos famigerados e sanguinolentos islâmicos é de uma hipocrisia exemplar, tal qual aquela dos conquistadores espanhóis que, à guisa de ensinar aos nativos a verdadeira religião diminuíram a população indígena de vinte milhões para seis milhões ao cabo de trezentos anos de esforços civilizatórios.
Prezados leitores, ao longo das próximas semanas teremos mais desdobramentos espetaculares, dignos dos filmes de James Bond. Só lhes peço uma coisa: assistam aos próximos episódios do fantástico show da vida com o ceticismo de um historiador da conquista da América que ao checar as fontes pergunta a si mesmo: para quem o cronista escreveu e por que ele escreveu?