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A Arte ou a Maldição do Convencimento

Posted by on 21/10/2015

O que preocupa a elite intelectual neste momento [século XIII] é a dialética, isto é a arte de argumentar, considerada então a arte por excelência, […] a disciplina das disciplinas, aquela que ensina a ensinar, que ensina a aprender; nela a razão descobre e mostra o que ela é. […] não se concebe como possível chegar a uma verdade que não foi anteriormente disputada: daí a importância da dialética, que ensina a estabelecer as premissas de um diálogo, a enunciar corretamente os termos de uma proposição, a estabelecer os elementos do pensamento e do discurso, enfim tudo o que permite ao discurso ser fecundo.

Trecho retirado do livro da historiadora francesa Régine Pernoud (1909-1998) “Heloise et Abelard”

A escolástica, enquanto movimento, difere da filosofia clássica pelo fato de suas conclusões serem circunscritas antes do evento. Ela deve funcionar nos limites da ortodoxia . […] Em termos de método […] utiliza os argumentos dialéticos com quase nenhuma referência aos fatos.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West” de Bertrand Russell, filósofo inglês (1872-1970)

Blair continua a defender você e os Estados Unidos à medida que avançamos na luta contra o terrorismo e na guerra contra o Iraque. Ele apresentará a você as linhas estratégicas, práticas e aquelas relativas a questões públicas que ele acredita reforçarão o apoio mundial a nossa causa comum.

Memorando enviado por Colin Powell em 28 de março de 2002 ao então Presidente dos Estados Unidos a respeito da reunião que este teria em seu rancho Crawford no Texas com o então primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair de 5 a 7 de abril de 2002

    Prezados leitores, vocês sabem a diferença entre demonstrar e convencer? Para explicar-lhes, vou começar dizendo que na Idade Média os intelectuais demonstravam por meio da dialética, ao passo que na Renascença os intelectuais convenciam por meio da retórica redescoberta pela leitura dos autores clássicos. A demonstração é uma operação que segue regras rígidas, as quais se forem violadas põem tudo a perder: um silogismo cuja premissa é falsa não fica de pé, assim como cai por terra aquele em que a conclusão não deriva necessariamente dos seus termos. É uma pena que nosso ensino seja tão esculhambado que tal arte tenha sido totalmente deixada de lado, de modo que falamos e ouvimos por aí declarações que do ponto de vista lógico são absurdas.

    A grande revolução da Renascença foi que os sábios da época deixaram de lado as amarras da escolástica e deram- se a liberdade de pensar livremente. Naquela época, digamos séculos XIV, XV, pensar livremente não significava a ampla liberdade que temos de fazer ataques pessoais como normalmente acontece em pleno século XXI na internet, mas simplesmente não ter as conclusões colocadas a priori, como ocorria com os praticantes da dialética, que sempre deveriam chegar à conclusão de que Deus existe, de que Deus é onipotente, onipresente e criou o mundo e todos os dogmas da Igreja Católica. Os renascentistas lançaram-se à busca de outras fontes de sabedoria que não fossem a Bíblia, incluindo o mundo real, o mundo das cidades em pleno florescimento econômico e cultural. Para eles, mais importante que demonstrar verdades com base exclusivamente em exercícios mentais, era convencer as pessoas sobre um determinado rumo a seguir, seja a assinatura de um tratado de paz, a construção de uma obra pública, o estabelecimento de relações comerciais. Neste admirável mundo novo em que havia tanto por fazer e descobrir, engajar as pessoas em empreendimentos conjuntos exigia fisgá-las pelas palavras, seja por aquilo que as palavras mostravam da realidade externa quanto da realidade interna dos homens.

      Não é exagero dizer que isso foi um passo gigantesco, pois o caminho que a civilização ocidental trilhou desde então foi sem volta. É claro que demonstrações ainda são e serão imprescindíveis na matemática, por exemplo, mas na arena pública o tempo de ouvir monges decantando as verdades extraídas da Bíblia passou definitivamente. Nós estamos dispostos a ouvir qualquer um que nos toque o coração revelando algo sobre nós mesmos ou a razão mostrando-nos os fatos, ou melhor, alguém que faça uma mescla dos dois. Um exemplo de exercício desta arte do convencimento foi dado por Tony Blair primeiro-ministro do Reino Unido de 1997 a 2007, que foi o instrumento oratório de George Bush, um homem com notórias dificuldades linguísticas, para tornar a Guerra do Iraque palatável e aceita pela “comunidade internacional”.

    A extensão dos serviços de Blair está sendo revelada com a publicação, ordenada pela justiça americana, de 30.000 e-mails recebidos por Hillary Clinton enquanto ela foi Secretária de Estado de 2009 a 2013. Como é sabido, Hillary está sendo investigada por ter utilizado um servidor pessoal para troca de informações confidenciais fora da rede segura do governo do Estados Unidos, e no âmbito das investigações ora em curso os memorandos sobre as atividades dos membros do governo de George Bush estão sendo revelados. Blair foi crucial no esforço de guerra não pelo poderio bélico do seu país, mas por ter dado uma pátina de respeitabilidade a uma intervenção militar que não foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, e portanto violou o direito internacional. Em abril de 2002, exatos onze meses antes do início da guerra no Iraque, George e Laura Bush receberam Tony e Cherie Blair no rancho do texano e conforme mostram os memorandos escritos por Colin Powell, o Secretário de Estado americano de 2001 a 2005, lá costuraram a estratégia de convencimento da utilidade de depor Saddam Hussein.

    Como evidência da periculosidade do ditador sanguinário, Blair repetiu ad infinitum as informações colhidas pelos órgãos de inteligência dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha que Saddam tinha desenvolvido armas de destruição em massa e estava pronto a utilizá-las, o que revelou-se totalmente sem fundamento. É claro que para a imprensa ao chegar ao Texas o advogado formado em Oxford disse que “Não estamos propondo ação militar neste momento”. Tudo mentira, pois um acordo foi selado então: Bush apresentaria Blair como o líder do Reino Unido, parceiro especial e estratégico dos Estados Unidos, o país mais poderoso da Terra então, e em troca desta massagem no ego do ex-império onde o sol nunca se punha, perdido após a Segunda Guerra Mundial, Blair realizaria o esforço de provar aos mais céticos que Saddam Hussein era a besta do apocalipse.

    Prezados leitores, a retórica eficaz do dono do sorriso Colgate, que hoje fatura rios de dinheiro prestando consultoria a governos em todo o mundo, permitiu que os Estados Unidos montassem a coalisão do eixo do bem, composta de 48 países, que contribuíram com tropas seja para a invasão seja para a ocupação do Iraque. O vácuo de poder deixado pela queda do regime baathista permitiu a criação do Estado Islâmico, financiado pela Arábia Saudita e pela CIA para atacar os países shiitas, entre os quais o Irã. Como vemos agora, a criatura escapou do controle dos seus criadores e decidiu voar com asas próprias, realizando, entre outras façanhas, a destruição do patrimônio histórico milenar do Oriente Médio.

    Será que a maestria maligna de Blair nos convence de que é melhor deixar a retórica de lado e voltar às demonstrações cabais?

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