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La Serenissima

Posted by on 05/10/2015

[Veneza] descobriu o segredo de impedir revoltas satisfazendo de maneira adequada as necessidades dos cidadãos, não lhes impingindo um mal funcionamento do Judiciário, nem as misérias da guerra, e muito menos as privações causadas pelo peso dos tributos – dificuldades que em outros lugares levaram aqueles que não tinham direito à participação política a rebelarem-se. Consequentemente, Veneza durou até 1797, uma das poucas cidades-estado a sobreviver nos tempos modernos. Como Florença, não era uma democracia, mas uma oligarquia que funcionava bem. Em um sistema republicano extremamente equilibrado de conselhos e comitês, uma casta nobre governava a si mesma e a todo mundo.

Trecho retirado do livro Renaissance in Europe de Margaret L. King

O processo penal deve servir para absolver o inocente, mas também para condenar o culpado e, quando isso ocorrer, para efetivamente puni-lo, independendentemente de quanto seja poderoso. Não é o que ocorre, em regra, nos processos judiciais brasileiros.

Trecho retirado do artigo “Caminhos para reduzir a corrupção”, do juiz federal Sérgio Fernando Moro, publicado no jornal O Globo de 4 de outubro

  Prezados leitores, nesta semana farei um exercício de verificação do quão serena é a República Federativa do Brasil em relação à La Serenissima, como ficou conhecida Veneza,capital da região do Vêneto no que hoje é a Itália e que foi “o centro de uma república marítima cujo poder político e econômico fez sentir-se no Mediterrâneo durante mais de 1.000 anos”, de acordo com a Enciclopédia Britânica. É claro que de um certo ponto de vista estarei comparando entidades totalmente díspares do ponto de vista histórico, cultural e populacional, mas o ponto aqui é que a República de Veneza, que teve início como uma comunidade de pescadores e em meados do século VII d.C. adquiriu sua identidade política, teve uma tal longevidade em virtude dos fatores relacionados por Margaret King em sua história do Renascimento. Como é o desempenho do Brasil em relação a esses quesitos? Tentarei dar alguns exemplos ilustrativos de quão longe estamos da tranquilidade usufruída na cidade dos doges.

    Em Veneza a mão da oligarquia no poder era leve em relação à cobrança de tributos. Não é o caso aqui de citar números da carga tributária no Brasil, basta um pequeno acontecimento para mostrar como o Estado brasileiro tem uma tendência confiscatória. O novo ministro da Saúde, Marcelo Castro, médico psiquiatra piauiense, cujo último contato profissional com a área foi em 1981, mal tomou posse e já começou a martelar a ideia da volta da CPMF para custear as despesas da sua pasta. Pois bem, até aqui nada de novo sob o Cruzeiro do Sul. A contribuição de Marcelo ao debate tributário é que em sua opinião a CPMF deveria ser cobrada nas operações de débito e de crédito ao mesmo tempo, ou seja, do sujeito que faz o depósito no banco e do sujeito que realiza o saque. Seria uma incursão mais decisiva no bolso dos contribuintes em relação àquela estabelecida pela lei 9.311 que instituiu a CPMF em 24 de outubro de 1996 e que no seu artigo segundo relacionava os diversos fatos geradores da contribuição, colocando em itens separados os lançamentos a débito (inciso I) e os lançamentos a crédito (inciso II) realizados pelas instituições financeiras. Se a ideia do digníssimo ministro vingar e cada operação financeira for tributada na sua ponta credora e na sua ponta devedora, teremos o mesmo fato gerador, um depósito, para ficar no exemplo já dado acima, as mesmas partes, o depositante e o sacador, a mesma base de cálculo (o valor depositado) e o pagamento em dobro da CPMF, o que é um exemplo clássico de bitributação. Para explicar melhor, assim como em Direito Penal uma pessoa não pode ser punida pelo mesmo crime duas vezes, no Direito Tributário a pessoa não pode ser tributada duas vezes pelo mesmo fato gerador. Mas o afã arrecadatório do governo brasileiro é tamanho que tenho certeza que arranjarão eminentes juristas que usarão artifícios retóricos para demonstrar que a cobrança nos moldes propostos por Marcelo Castro é legal e não fere o princípio do non bis in idem que protege tanto os criminosos quanto os contribuintes.

    Aliás, se os contribuintes estão indefesos ante a CPMF que avança a passos largos, por mais que todas as autoridades políticas digam o contrário, o mesmo não podemos dizer dos criminosos. Enquanto os venezianos não se sentiam flagrantemente injustiçados, e por isso nunca se revoltaram contra a oligarquia que mandava na cidade, de acordo com Margaret L. King, os brasileiros sentem que a justiça brasileira, em nome de nobres princípios de liberdade e de garantia contra o arbítrio dos ditadores, na prática tem diversos pesos e medidas. Levando a presunção da inocência às raias da insensatez, o processo penal tupiniquim permite que o condenado em juízo recorra em liberdade, o que significa que quem tem a capacidade financeira de pagar advogados por longos anos pode valer-se de um arsenal de instrumentos contra uma primeira decisão negativa por um caminho infindo que chegará, a depender da habilidade do criminalista, no STF, a saber: apelação, recurso em sentido estrito, embargos de declaração, embargos infringentes, embargos de nulidades, carta testemunhável, correição parcial, recurso especial e extraordinário, agravo contra decisão denegatória de recursos especial e extraordinário, agravo em execução, habeas corpus e finalmente a revisão criminal, que é o último coelho a ser retirado da cartola do defensores da inocência absoluta dos privilegiados.

    Não admira que nós no Brasil estejamos em guerra, ao contrário da Sereníssima, que soube defender-se de seus inimigos por séculos e séculos e garantir a paz. O fato de nem todos estarem submetidos à mesma lei gera a impunidade que gera desconfiança mútua, que gera violência. Perguntem aos infelizes que confiam cegamente na tecnologia e obedecem fielmente às ordens do aplicativo Waze. Chegando no território inimigo, são recebidos à bala, como aconteceu na noite do sábado dia 4 de outubro com José Francisco Antônio Múrmura e Regina Stringari Múrmura que acabou morrendo ao ser atingida por três tiros na favela do Caramujo em Niterói. Ou então são solicitados a colocar as mãos para o alto, como aconteceu em São Paulo no dia 9 de setembro com o empresário Marcos Piccini que foi levado pelo aplicativo de navegação à cracolândia e teve que se explicar para um policial que lhe apontou uma arma supondo que ele fosse usuário de drogas. Em suma, no Brasil a presunção da inocência vale nos tribunais para quem paga muito bem e por largo tempo, nas ruas o que vale em muitos momentos e lugares é o princípio hobesiano de todos contra todos. Por acaso isso não é um conflito bélico, em que pese ser intermitente e geograficamente determinado?

    Prezados leitores, meu singelo objetivo aqui não foi o de provar que devemos copiar o exemplo de sucesso de uma cidade italiana de pouco mais de 400 quilômetros quadrados e 270.000 habitantes em um país de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e mais de 200 milhões de habitantes, se mais não fosse porque os tempos áureos de Veneza ficaram definitivamente para trás. Foi simplesmente mostrar que com um Estado inclemente na sua voracidade e uma população em pé de guerra estamos longe de desfrutarmos da tranquilidade necessária para atacarmos juntos os problemas que são de todos.

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