Seguindo o historiador Norberto Galasso, damos conta dos feitos, sucessos e processos que fizeram do endividamento público um verdadeiro compêndio do que não deve ser feito, se o que se busca é a felicidade do povo e a grandeza da Nação. Porque em torno dessa dívida configurou-se um modelo baseado na fraude, na corrupção e no delito econômico constantes, que postergaram o bem-estar da maioria e a justa aspiração a um desenvolvimento autônomo, equitativo e em paz.
Trecho escrito por Federico Saraiva da introdução à história em quadrinhos “Em Dívida Dois – Os Impérios Contra-atacam, Um Desenho Argentino” publicada pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires
Primeiro desarmar essa bomba fiscal, que é ótima, a gente gerou um processo inclusivo espetacular neste País (com os gastos sociais), mas está na hora de olhar os programas sob a ótica de atender a quem de fato precisa. Essa discussão está bem antes do investimento público. Não conte com ele nos próximos vinte anos.
Trecho de entrevista dada por Luiz Guilherme Schymura, diretor do Ibre FGV dada ao jornal O Estado de São Paulo em 12 de julho
As parcerias público-privadas podem ser vistas como outra forma de livrar-se de dívidas – e o preço amargo será pago pela próxima geração de cidadãos.
Peter Waldorff, secretário-geral da Federação Global de Sindicatos Public Services International
Prezados leitores, há uma atração turística em Buenos Aires que não está nos guias, mas que abordo nesta semana porque impressionou-me muito quando lá estive em 2012. Chama-se Museo de la Deuda Externa (Museu da Dívida Externa) que não passa de uma sala no campus da Universidade de Buenos Aires com vários painéis explicativos contendo a história da dívida argentina desde as negociações com os banqueiros Baring Brothers em 1824 até a época atual. Como presente pela visita recebemos uma história em quadrinhos, cujos personagens incluem José Alfredo Martinéz de Hoz e Domingo Felipe Cavallo, para ficar somente naqueles que me eram mais ou menos conhecidos, levando em consideração que enquanto estive sentada nos bancos escolares ouvi muito pouco sobre a história dos hermanos.
Muitos reparos podem ser feitos ao modo como esse drama é relatado, pois de um lado há os mocinhos que lutaram pelo desenvolvimento da Argentina como nação soberana, e os bandidos, que sempre estiveram dispostos a entregar o país de bandeja aos gringos contraindo empréstimos no exterior. Não há como negar, entretanto, que uma iniciativa como essa de explicar como a dívida foi criada ao longo da vida independente da Argentina toca em questões fundamentais cujos efeitos são sentidos diariamente pela população, como enfatizou Federico Saraiva em sua exposição de motivos sobre o porquê da preparação da cartilha.
Infelizmente no Brasil não tenho conhecimento de alguma instituição acadêmica ter problematizado o assunto dívida para chamar a atenção dos cidadãos. O resultado é que mesmo nossas cabeças pensantes consideram certas coisas naturais, fatos que não podem ser mudados porque estão aí, pedindo providências. Não pude deixar de pensar nos bandidos de “Deuda 2, Los Imperios Contraatacan” ao ler a entrevista deste Doutor em Economia pela FGV e pós-doutor pela Universidade da Pensilvânia citado acima que propõe uma fórmula mágica para desatar o nó da infraestrutura “vexatória” do Brasil. A fórmula é fazer das agências reguladoras meras fiscalizadoras e deixar a elaboração das regras de investimentos a cargo dos ministérios para que não haja ingerências políticas, corrupção e assim o tal do marco regulatório possa ser claro e garantir a segurança para os investidores.
Não vou aqui discutir se a ideia dele é boa ou ruim, pois não tenho capacidade técnica de fazê-lo. A única agência reguladora com a qual tive contato em meus 43 anos de vida foi a ANATEL, que acionei quando tive que cancelar o celular da minha finada mãe, pois a operadora fazia corpo mole. Seria temerário eu dizer que todas elas são boas com base em minha experiência bem-sucedida com a reguladora da telefonia. O ponto sobre o qual quero chamar a atenção é Luiz Guilherme Schymura pressupor que não haverá investimento público nas próximas décadas porque o único dinheiro que vai sobrar no caixa do governo, depois de pagas as despesas fixas de pessoal, aposentadoria, custeio da máquina, é o dos programas sociais, intocáveis porque atendem uma parcela extremamente vulnerável da população.
Ora, por que devemos aceitar isso como incontestável? Por acaso será porque sempre estaremos fazendo esforços hercúleos para gerar superávits primários e alocá-los para a amortização da dívida, sobrando nada para investimentos produtivos? Será que é razoável que nos conformemos com essa situação e possamos esperar que estabelecendo as sacrossantas regras claras, projetos bem definidos, resolvendo os pepinos ambientais e indígenas antes, os investidores acorrerão para financiar as tão necessárias obras de infraestrutura? Tenho lá minhas dúvidas, aliás confirmadas pelo próprio economista, que reconhece o papel que o BNDES tem desempenhado nos tais dos investimentos privados, feitos na prática de empréstimos de um órgão público. Não nos esqueçamos que a Copa de 2014 não teria acontecido sem o dinheiro da Viúva, como diz o jornalista Elio Gaspari, e o mesmo está ocorrendo com as Olimpíadas do ano que vem.
Discutir a dívida seria um bom ponto de partida para falarmos sobre as PPPs que todos prometem ser a salvação da lavoura por tornarem a opção pelo tal do investimento privado ainda mais radical do que agora no regime das concessões tradicionais de serviços públicos. As PPPs foram bastante utilizadas no Reino Unido para projetos de estradas, ferrovias, pontes e túneis. Houve muitos resultados desastrosos, a começar pela PPP para o metrô de Londres, que gerou um custo aos cofres públicos de 410 milhões de libras esterlinas. As operações não foram interrompidas graças ao forte aumento do preço das viagens (para saber mais, consulte www.epsu.org). Se em um país de primeiro mundo há problemas, por que tantas cabeças coroadas no Brasil com diplomas e títulos tecem tantas loas a elas? Será que é por que estão na moda na Europa e nós seguimos nossa vocação de macaquitos?
Prezados leitores, neste fim de semana Alexis Tsipras, o primeiro-ministro grego, aceitou leiloar a Grécia para pagar a dívida do país que chega a 170% do PIB, de acordo com as últimas estimativas. Um fundo de 50 bilhões de euros será constituído com o fruto da privatização de portos, aeroportos e ferrovias gregos, sendo que 75% dos recursos serão destinados a reestruturar os bancos gregos e ao serviço da dívida. Provavelmente não saberemos nunca os reais motivos de um líder que se diz de esquerda ter aceitado condições mais draconianas do que aquelas que seriam negociadas por um governo de direita. Medo de ser mais um tribuno da plebe assassinado? Ter ficado sem apoio de outros países europeus endividados, como Itália e Espanha? Terá sido o referendo uma mera cortina de fumaça de Tsipras? O fato é que se os gregos não forem às ruas e protestarem a dívida monstruosa cairá inteiramente no colo deles, mais do que já tem caído. Por isso, a lição da Argentina, que já deu vários calotes e continua aí bem ou mal virando-se como pode,°merece ser lembrada: quando a divída ataca o melhor é olhá-la de frente para perder o medo e impedir que ela nos devore.