É uma luta de visões sobre quem vai governar o futebol mundial. Existem alguns na Europa Ocidental que pensam que, por ter a Liga dos Campeões, por ter os melhores jogadores do mundo, isso os [sic] dá uma espécie de direito divino de controlar o futebol mundial. Mas o futebol não pertence mais à Europa.
Jerome Champagne, ex-alto funcionário da FIFA em entrevista dada ao Estado em 7 de junho intitulada “Os Europeus querem voltar a controlar o futebol mundial”
Como muitos outros da elite britânica, ele contenta-se em satisfazer as necessidades das elites muito mais ricas da Rússia e da Ásia; em ser membro de uma classe de serviçais em vez de uma classe produtora. […] O círculo do centro de Londres no qual somente os mais ricos podem morar crescerá cada vez mais, e a outrora grande, diligente e criativa metrópole de Londres tornar-se-á aquilo que o guia Spear’s 500 quer que ela se torne: uma Mônaco sem o sol.
Trecho do artigo intitulado “Serviçais dos super ricos”, de Nick Cohen, publicado em 16 de maio na revista Spectator sobre os banqueiros, gestores de investimento, advogados e especialistas em segurança que atendem os plutocratas cujas atividades contribuem 3.2 bilhões de libras ao PIB do Reino Unido
Prezados leitores, entre os livros que adquiri nas minhas férias está a biografia de Maria Antonieta, de Antonia Frazer. A rainha da França no tempo da Revolução foi um típico bode expiatório, isto é, serviu para expiar as culpas de séculos e séculos de injustiças que existiram antes e depois dela. Na realidade ela não era muito melhor ou pior do que a média das mulheres da sua classe social, mas passou à história como lésbica, pedófila (em seu julgamento foi acusada de manter relações sexuais com o filho), perdulária e insensível ao sofrimento do povo, a ela atribuindo-se erroneamente a frase: se eles não têm pão que comam brioches. Em muitos aspectos ela foi grandemente injustiçada, porque praticava muita caridade e não era alienada ocmo a pintavam os satiristas, mas teve o azar de estar no momneto errado no lugar errado, pois os franceses precisavam acertar contas com o passado feudal e tal acerto passava por um total rompimento com o passado. Não admira que Maria Antonieta tenha sido guilotinada por crimes que nunca cometeu: a punição era à rainha como um símbolo, muito mais do que à rainha como indivíduo.
Eu sempre desconfio de um processo coletivo de imolação quando temos uma unanimidade de todos, direita, esquerda e centro em favor de algo. Falo do caso FIFA e de Joseph Blatter novamente, porque acho que devo esclarecer minha posição de maneira melhor do que o fiz há sete dias. Ao longo da semana pulularam denúncias contra o ex-presidente do órgão que controla o futebol mundial: um “cala-boca” pago à Federação de Futebol da Irlanda pela desclassificação do país da Copa do Mundo de 2014 devido ao gol de mão do jogador francês, propina paga a membros da FIFA para escolherem a África do Sul como sede, e no jornal Le Monde de 7 de junho há a informação de que o processo de atribuição em dezembro de 2010 das Copas do Mundo na Rússia e no Qatar em 2018 e 2022, respectivamente, estão na mira da justiça americana. O título da reportagem é: “Escândalo na FIFA, a Rússia e o Qatar podem perder a Copa do Mundo”.
É neste ponto que queria chegar. Sobre o alcance internacional que a Justiça dos Estados Unidos dá a si mesma, independentemente da anuência ou não dos outros países do mundo, já falei antes. Não estou aqui a dizer que toda essa investigação americana é uma mentira, um bando de calúnias, claro que não, muita sujeira está vindo à tona e virá à tona. Afinal, o futebol é feito a partir de uma combinação perniciosa de elementos: a paixão das massas, que se interessam muito mais por quem vai ganhar o campeonato do que por quem vai ganhar as eleições em seu país, o potencial para a lavagem de dinheiro por meio da inflação de ativos, representada pelas transferências milionárias das estrelas do futebol, e a atuação de empreiteiras na construção das tais das arenas, que em todos os lugares acabam transformando-se em elefantes brancos a que os defensores da Copa chamam de legado.
Não admira, portanto, que haja o conluio de empresários, políticos e dirigentes de futebol para usar as emoções do povo para seu proveito. A minha desconfiança em relação a essa investigação é a respeito dos motivos que estão por trás dela. Tais motivos revelam-se pela quantidade de gente que de repente começa a sair do anonimato para revelar os desmandos do futebol. Por que agora encheram-se de coragem todos juntos? Porque de repente Sepp Blatter está apanhando mais do que boi ladrão, como dizemos no Brasil? Será que devemos nos regozijar inteiramente com esse furor americano de revelar as entranhas corruptas do futebol?
Como deu a entender Jerome Champagne em sua entrevista, toda essa unanimidade em torno da condenação de Blatter à fogueira, todo esse discurso uníssono de indignação moral, escamatoeia uma luta de poder em que europeus querem manter seu controle sobre o futebol por meio da UEFA . Eu adicionaria um outro fator, que tem a ver com as movimentações na geopolítica mundial e que Jerome não menciona porque atem-se ao domínio esportivo. Aos americanos interessa macular a credibilidade da FIFA e dos seus mecanismos de escolha para melar a Copa do Mundo na Rússia e isolar o país ainda mais, já sujeito às sanções econômicas da União Europeia. Não peço que acreditem em minha teoria conspiratória, ela pode ser simplesmente uma elocubração insana, um anti-americanismo infantil, como diria a VEJA, mas essa conjugação de esforços simultâneos para mostrar os esquemas da FIFA e de Joseph Blatter, o homem que flerta com países fora do eixo ocidental, parece ter um objetivo ulterior para o qual o desmanche da organização mundial do futebol, se é que vai haver, é apenas um instrumento.
Há muitas coisas desenrolando-se no mundo que estão escapando ao controle ocidental. Como mostra a crise da dívida na Grécia, o FMI foi usado acintosamente pelo ex-presidente Dominique Strauss Kahn para ajudar os credores europeus e salvar o euro. Na semana passada o primeiro-ministro da Grécia acusou o FMI de estar em conluio com o Banco Central Europeu e os bancos privados credores para impor um plano de austeridade que só fez piorar a situação da economia grega e cujo único objetivo era assegurar o pagamento da dívida a qualquer custo, ao ponto em que agora a Grécia deve 180% do seu PIB. O que fará Alexis Tsipras se o FMI insistir em condições draconianas (aumento de impostos e corte de benefícios sociais) para rolar a dívida? Concordará em enfiar o ajuste goela abaixo da população ou procurará ajuda alhures? Decidirá retirar o país da zona do euro e orbitar em torno da Rússia, cujo presidente encontrou logo depois de tomar posse? Os BRICS já perceberam há muito que o FMI protege os interesses ocidentais, tentaram mudar o regime de cotas, houve resistência. A China assumiu a liderança na revolta e criou um banco asiático para investimentos em infraestrutura, propondo ainda a criação de uma alternativa ao FMI que ainda não saiu do papel.
Em suma, o mundo gira, como mostrou Galileu, e as estruturas de poder tem seu apogeu e ocaso. Estamos em uma fase de transição, em que os tradicionais reis da cocada preta querem manter tudo como está, enquanto novos atores surgem exigindo espaço. A FIFA atualmente é o palco das disputas, mas a depender do desenlace do imbróglio grego poderá no futuro próximo ser o FMI e suas medidas de austeridade que curam a doença matando o doente ou o Banco Mundial e suas prioridades de investimento. Veremos. Enquanto isso, tenhamos em mente que em toda indignação moral há uma ponta de despeito. Isso nos permite ter uma visão mais equilibrada das coisas.