O capitalismo transforma tudo em commodities que podem ser vendidas e compradas
Karl Marx, filósofo e economista alemão (1818-1883)
Prezados leitores, desculpem-me se repito uma citação do velho barbudo, mas não consigo deixar de pensar nesta frase que já se transformou em clichê, mas que a mim parece não perder a validade. Quando olho ao meu redor e contemplo o espetáculo da nossa política, das nossas relações pessoais e profissionais não posso deixar de chegar à conclusão de que a medida de todas as coisas é o dinheiro. Não quero com isso dar-me ares de superioridade moral, afinal eu vivo na sociedade capitalista e conscientemente ou inconscientemente compartilho os mesmos valores, em maior ou menor grau. Vou dar-lhes um exemplo comezinho: minha professora de ginástica julga os homens com os quais suas amigas casaram ou com os quais têm relacionamento do ponto de vista de “ter ou não bala na agulha”, ou seja terem ou não dinheiro. Quem tem “bala na agulha” é mais confiável, não vai decepcionar, quem não tem provavelmente vai cometer um erro ao longo do caminho, ou vai abandonar a mulher grávida, ou não vai pagar pensão ao filho ou vai ser um pai pouco presente. O pressuposto aqui é que a posse de dinheiro dá à pessoa automaticamente um arsenal de virtudes intrínsecas a este estado de bem-aventurança financeira.
A política é o ambiente por excelência em que é óbvio a todos os eleitores, independentemente de suas escolhas políticas, que a métrica é exclusivamente pecuniária. Não teríamos este nível de corrupção agora escancarado pela Operação Lava Jato se os nossos políticos não tivessem a convicção de que quem tem mais tem mais valor. Quem tem mais dinheiro organiza campanhas mais poderosas, consegue eleger-se na base dos jingles feitos por publicitários regiamente pagos para oferecerem aos seus contratantes toda a gama de técnicas mercadológicas necessárias para vender o produto em questão. E como negar a verdade factual dessa premissa? Por acaso algum político desconhecido que dispusesse de parcos segundos no horário eleitoral gratuito ou que não fosse uma celebridade na televisãoteria sido eleito? Há alguma chance de uma pessoa expor suas ideias em um blog como eu faço e tentar angariar simpatizantes para sua causa, com base exclusivamente na lucidez das suas propostas? Lembremos que criaturas esdrúxulas como Enéas e Tiririca foram escolhidaspor pessoas que estavam a fim de avacalhar e simpatizaram com o bordão “Meu nome é Enéas”e “Vote em Tiririca, pior que tá não fica!”.
Poder-se-ia objetar que nesses dois casos o dinheiro não foi determinante para a eleição, o que é verdade,mas o ponto central permanece o mesmo: há uma tal ausência de valores que quando o dinheiro não está diretamente presente, surge um vácuo, preenchido por candidatos que não têm nada a oferecer, além da negação niilista do “tudo por dinheiro” sem que nada seja colocado em seu lugar. Afinal, o que Enéas Ferreira Carneiro, morto em 2007 propôs de novo em termos de fazer política, em termos de projetos, ele que era médico cardiologista e que portanto tinha plenas condições de fazer propostas na área da saúde? Ele esbravejava contra a corrupção de maneira indiscriminada e portanto inútil. Nem falemos de Tiririca, que nem a cruzada da vassourinha que vai varrer a bandalheira tentou, pois seu objetivo é realmente divertir-se e divertir.
Não podemos esqueceras outras partes interessadas no balcão de negócios, as empresas que compram favores de políticos, na forma de contratos, concessões e outras benesses e os funcionários de estatais que os vendem a preço de ouro. A referência é sempre o dinheiro. Os políticos precisam de dinheiro para reeleger-se, as empresas precisam encontrar fontes contínuas de receita que garantam a continuidade operacional por longos anos, os funcionários da Petrobrás (para ficar no foco da Lava Jato) precisam do vil metal para acumularem mais vil metal. Em um mundo democrático em que os sinais de status não mais são dados pela família ou o local em que o sujeito nasceu ou pela faculdade que frequentou, a diferenciação entre os melhores e os piores só pode dar-se pela ganância: quanto mais o indivíduo faz qualquer coisa por dinheiro, mesmo que ele tenha possibilidade de viver honesta e confortavelmente com seus ganhos salariais, mais ele acumulará e mais status terá em uma sociedade cuja única baliza moral realmente sólida é a lógica da acumulação.
Tanto isso é verdade que as pessoas que seguem essa lógica do dinheiro como medida de todas as coisas agem com muita desfaçatez. No sábado passado estava assistindo a um documentário de Nelson Honieff sobre Paulo Francis em que abordaram-se as circunstâncias de sua morte. Para quem não se lembra, ele estava sendo processado nos Estados Unidos por ter feito acusações sem provas contra diretores da Petrobrás que teriam dinheiro na Suíça. Quase vinte anos depois as investigações da Polícia Federal estão revelando exatamente aquilo que ele ouvira de um advogado com quem compartilhara uma refeição. E no entanto à época, Joel Rennó, o então presidente da Petrobrás, entrou com uma ação pedindo indenização por danos morais no valor de 100 milhões de dólares. Claro que todos aqueles que apoiaram Joel em sua empreitada e que trabalhavam na Petrobrás sabiam que as acusações do jornalista tinham um fundo de verdade, mas também sabiam que ele jamais poderia prová-las, daí a ação na Justiça. Não há dúvida de que o espectro de ficar devedor de uma bolada que ele não tinha condições de pagar por calúnia contribuiu para que Paulo Francis sofresse o ataque cardíaco que o matou em 4 de fevereiro de 1997, em pleno Carnaval. Mas o importante é que as negociações escusas puderam continuar incólumes e o dinheiro a fluir e a gerar mais dinheiro. A morte de um indivíduo cuja única culpa foi ter falado demais e publicamente não é importante.
Assim, o crucial é que a roda da fortuna continue a girar. Como comentei neste espaço na semana passada o Programa FIES de subsídios às universidades particulares é uma bomba de efeito retardado que um dia vai estourar na mão dos contribuintes, sem que tenha de fato contribuído com a melhora das qualificações do nosso povo. Mas o que importam valores educacionais? O que importa é que muitos lucram: os políticos que ganham votos dos eleitores agraciados com o status de universitários, os donos de universidades e os próprios funcionários das universidades que garantem seu emprego alimentando a fantasia do diploma de nível superior sem esforço. Pude constatar a inutilidade de tudo isso ao conversar com o motorista da ambulância que carregava minha mãe para o hospital no domingo dia 22. Ele formou-se em Gestão de Logística e confessou-me que não se lembra de nada que viu na faculdade, que não aprendeu nada e que ao comprar o diploma com empréstimo do governo tinha certeza de que nunca trabalharia com Logística.
Prezados leitores, tudo é tão lógico e no entanto tudo é tão deprimente A mim é deprimente porque como sou amante de História sei que em outras eras o dinheiro não era a medida de todas as coisas, por isso sempre que posso refugio-me nesse tempo perdido e mítico, em que o espírito era a medida das coisas. Mais sobre esse assunto, para quem tiver curiosidade, acompanhem-me semana que vem.