Um até então obscuro deputado conservador do Parlamento Britânico, Nigel Mills, foi fotografado jogando Candy Crush no seu celular enquanto ele deveria supostamente estar ouvindo pessoas do setor de seguros o entediando até a morte sobre certos assuntos. O Senhor Mills, não mais obscuro! – é membro do Comitê de Trabalho e Aposentadoria, mas considerou um jogo provavelmente feito para crianças de quatro anos mais interessante do que ouvir o que os funcionários da empresa Aviva pensavam sobre o Pronunciamento de Outono do primeiro-ministro {…} O comportamento de crianças que estão aprendendo a andar, com toda a auto-absorção e o narcisismo dos muito, muito jovens parece ser a característica definidora da nossa população.
Trecho do artigo “Tornamo-nos uma nação de birrentos”, do jornalista britânico Rod Liddle, publicado na edição da revista Catholic Herald de 16 de janeiro
Prezados leitores, vivenciei um pequeno episódio no sábado à noite que me deu o mote para o meu artigo semanal. Estava em um encontro com ex-colegas de faculdade em uma pizzaria. Um deles tem um filho de um ano e dois meses e a esposa está esperando o outro. Para que ela pudesse ter um pouco de sossego eu peguei a criança no colo: afinal mãe e filho passam o dia inteiro juntos, seria bom que ela tivesse uns minutos para conversar. Pois bem, mal eu peguei o menino no colo e ele começou a chorar estendo os braços em direção ao pai e à mãe para voltar ao seu cafofo preferido. Eu tentei distraí-lo, mas foi em vão, o bebê queria porque queria livrar-se da estranha. Eu teria até insistido mais, porque via que a mãe estava evidentemente cansada, mas minha resolução desmanchou-se quando um outro colega, solteiro, ralhou comigo: “O menino está chorando, você não vê? Devolva-o para os pais!” Pelo tom, ele achava meu comportamento absurdo, afinal porque fazer o menino sofrer em vão?
E assim foi feito, eu o devolvi e não mais fiz qualquer tentativa de aproximação. O fato é que me senti totalmente derrotada, porque eu não tinha argumentos, melhor dizendo, meus argumentos são despropositados em nosso admirável mundo novo. Eu não me incomodo nem um pouco de ver e deixar uma criança chorar: por que haveria de ser um problema, contanto que a criança esteja alimentada, confortável e segura? Mas, essa é obviamente uma mentalidade para lá de ultrapassada. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo terceiro, garante aos rebentos brasileiros “proteção integral”, o que parece querer dizer uma ausência total de qualquer inconveniente, de qualquer contrariedade. Digo parece porque vejo ao meu redor, inclusive em minha própria família, um esforço determinado, diria até uma angústia dos pais em tentar poupar ao máximo seus pimpolhos de todo perigo e sofrimento. Outro dia estava visitando uma amiga que tem um filho de 16 anos. Fiquei lá ao redor de quatro horas e o moçoilo ficou o tempo todo jogando no computador. Quando ele surgiu da penumbra mal cumprimentou-me de vergonha. Pudera, a mãe não o deixa ir à escola a pé, que fica a dez minutos da casa, porque acha que o caminho está infestado de bandidos. Eu pensei: Bem, mas ele vive no Brasil, o que há de ser feito? Ela vai acompanhá-lo a todos os lugares durante a vida dele toda? Ele nunca sairá sozinho?
De novo eu me calei, não discuti, não contra argumentei. Para quê? Em certos aspectos da modernidade considero-me uma derrotada. Meus valores são muito diferentes, do século passado, e não vejo como compatibilizá-los. O máximo que tento fazer é adaptar-me para sobreviver no mercado de trabalho e no meio social. Adaptação não quer dizer rendição completa, no fundo da minha alma acho que está tudo de pernas para o ar. As condições materiais da vida mudaram muito, mas ainda não foi estabelecido um código moral para refletir essa nova realidade. Dessa discrepância surgem muitas inconsistências na reação das pessoas. Vou dar-lhes alguns exemplos.
Em agosto do ano passado causou grande comoção a imagem da moça que tirou um selfie de si mesma, toda sorridente, ao lado do caixão de Eduardo Campos, então candidato à Presidência da República, como se o enterro de uma pessoa fosse uma celebração como outra qualquer. No entanto, permitam-me levantar um ponto: quem parece ter dado o tom do enterro, o quê de convescote que ele tomou, foi a própria família do finado, que fez questão de usar camisetas amarelas com uma mensagem política estampada, fazendo-nos propositalmente esquecer que se tratava do falecimento de uma pessoa. Luto, preto, é uma coisa muito triste! O lema desse mundo novo é evitar toda dor, todo sofrimento, e para isso é imperioso livrarmo-nos dos símbolos da perda: nada de cores sombrias, de óculos escuros, de véus cobrindo o rosto, de formalidade, de reverência. A viúva desfila no carro dos bombeiros, veste-se de calça jeans e tênis, e leva a tiracolo o filho que ainda mama. Como evitar que tal informalidade e descontração descambassem para o selfie ao lado da foto do guapo candidato de olhos azuis?
Quando uso a expressão de pernas para o ar o meu objetivo é chamar a atenção para o fato de que ainda não achamos o tom da nova era, em que estamos totalmente imersos na tecnologia. Foto em enterro não pode, mas porque selfie de uma mulher acamada na UTI, com hematomas na perna pode? Não é tão enojante quanto, ou há uma pequena diferença de grau? Uma colega minha de trabalho colocou em sua página no Facebook a pedra retirada do seu rim. No outro dia as pessoas comentavam: “Vocês viram que grande a pedra no rim de fulana? Nossa!”. O espanto obviamente era em relação ao tamanho do objeto, não ao fato de postá-lo na internet. Afinal, o importante é todos saberem da vida de todos, e como alertou Edward Snowden, a vida privada, tal como a conhecemos no século XX, é letra morta no século XXI.
Rod Liddle, em seu artigo, citado acima, sobre a infantilização das pessoas do seu país, a Grã-Bretanha, põe a culpa principal na falta de religião, que privou as pessoas de um código moral imutável. É difícil saber, pois é o tipo da questão sobre quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha: a tecnologia tornou-nos ateus, porque nos deu tantos poderes sobre a natureza que agora prescindimos da ajuda de um Deus?; ou o nosso abandono da estrutura de pensamento religioso tornou-nos mais propensos a aceitar a tecnologia de maneira acrítica, mitificadora, como se ela fosse capaz de resolver todos os nossos problemas e não criasse nenhum? O mais sensato é dizer que as duas correntes juntam-se para formar um rio caudaloso que é a flexibilização dos princípios. No passado os pais costumavam disciplinar os filhos e havia até o ditado, que eu tentei seguir com o filho do meu colega: “É de pequenino que se torce o pepino”. Os pais estavam em um patamar acima. Não mais. Hoje a principal função dos pais parece ser a de entreter os filhos, fazer de tudo para que eles fiquem os mais seguros e confortáveis possíveis e assim, na língua venenosa de Rod Liddle, cheguem aos seus trinta anos despreocupadamente jogando Candy Crush em uma audiência pública. No passado cultivávamos valores como pudor, privacidade, modéstia. Hoje o ser humano só existe no mundo, só se relaciona com seus pares, se ele estiver devidamente fotografado e publicado na internet.
Não me entendam mal: por incrível que parece não estou reclamando. Não estou aqui conclamando as pessoas a mudarem de hábitos, porque o caminho é sem volta. O que ocorre é que como formei minha cabeça antes da avalanche das mídias sociais e da tecnologia móvel, eu tenho um olhar digamos antropológico sobre esses desdobramentos, justamente porque vivi em um outro período que me dá termos de comparação. Seria ingênuo achar que nosso mundo virtual, narcísico e feito de pessoas sorridentes que posam para fotos seja totalmente bom, ou totalmente mau. No final das contas, quem nasceu dentro dele tende a achá-lo natural, quem não nasceu, como eu, pode dar-se o direito de escolher algumas coisas e descartar outras. E assim o farei, para bem da minha saúde mental.