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Preto no branco

Posted by on 28/09/2014

As elites empresariais ou intelectuais do país tendem a ser brancas (há ainda exceções, mas elas estão se tornando mais raras ao longo dos anos). Nos anos 80, o México era de novo o país das três nações: a minoria crioula das elites e da classe média alta, que vivem com estilo e riqueza; a grande e pobre maioria mestiça; e a minoria totalmente despossuída do que nos tempos coloniais era chamada de República dos Índios.

 

Jorge G. Castañeda, intelectual e político mexicano, em 1995, ao apontar o substrato étnico das disparidades verificadas no México

Escravidão era prática usual na África antes de os europeus chegarem e, quando virou negócio global, continuou enriquecendo africanos.

Trecho retirado do artigo “Escravo é aquele que não sou eu”, escrito por Alexandre Vieira Ribeiro para a edição de setembro de 2014 da Revista de História da Biblioteca Nacional

Escravidão ajudou a enriquecer a Suíça – Bancos do país financiaram, segundo pesquisas, o tráfico de pelo menos 175 mil escravos africanos

Artigo escrito por Jamil Chade para o jornal o Estado de São Paulo a respeito da atuação de banqueiros suíços de Neuchâtel no comércio de escravos para a América

            Prezados leitores, tem se tornado comum este cavoucar do passado, este reabrir de velhas feridas para entender certos fenômenos que ainda estão presentes em nossa sociedade. No Brasil temos a Comissão da Verdade, que investiga os crimes cometidos durante a ditadura militar. Na Suíça há uma organização não governamental, Cooperaxion, com sede em Berna, capital do país, que pesquisa o envolvimento de suíços e de instituições suíças no comércio de escravos. O objetivo é o de conscientizar os helvéticos a respeito desse assunto e quem sabe, conseguir uma reparação em dinheiro do governo suíço para os descendentes dos escravos.

            Para nós brasileiros, a escravidão é crucial. Crucial porque o Brasil foi o país que mais recebeu africanos (cerca de 45% de todos os escravos trazidos para a América, estimados em 12,5 milhões ao longo de três séculos e meio de tráfico) e talvez o que mais tenha sido influenciado não só pelos povos que foram trazidos à força, mas pelo próprio escravismo que se implantou aqui. Lembro-me das minhas aulas de história em que o professor falava do tal comércio triangular: os europeus trocavam tecidos por escravos na África, levavam os africanos para a América e lá os trocavam por açúcar, rum ou outra commodity que era levada à Europa. O comentário de Jorge Castañeda que citei acima, que aponta as disparidades econômicas do México como diretamente relacionadas às divisões étnicas, bem poderia ser aplicado ao Brasil, o caldeirão de miscigenação da América Latina.

         O que mostra que tal miscigenação não foi completa, no sentido de harmonizar valores, perspectivas e oportunidades econômicas e sociais. Aliás, encontrei essas palavras de Jorge Castañeda em um artigo em que o autor, Steve Sailer, comenta sobre os resultados do trabalho do professor de Harvard Robert D. Putnam sobre os efeitos sociais da diversidade étnica. Putnam interessou-se pelo assunto em virtude do grande afluxo de imigrantes mexicanos aos Estados Unidos e das repercussões de tal imigração na sociedade americana. Para o cientista político americano, elas não são boas, porque essas pessoas trazem consigo sua cultura, seus modo de vida, e a característica principal que ele vê nos mexicanos é que são incapazes de confiar em ninguém que não pertença ao seu ciclo mais próximo de familiares ou agregados. Ao contrário, os Estados Unidos, como já observara Alexis de Tocqueville no século XIX em seu Democracia na América, sempre se caracterizaram por serem um país em que havia altos graus de confiança social. Isso se traduzia em associações cívicas, na participação dos cidadãos em empreendimentos conjuntos para o bem comum, como a construção de escolas, hospitais, bibliotecas e outras instituições públicas. A pujança da democracia americana era o resultado direto desse ativismo social, dessa disposição dos americanos de dedicarem parte do seu tempo para refletirem sobre a res publica e trabalharem para conservá-la. De acordo com Putnam, o aumento da diversidade étnica dos Estados Unidos, ao aumentar a desconfiança mútua dos indivíduos de diferentes origens que não se misturam, mina a sociedade porque torna muito mais difícil haver cooperação mútua para o cultivo da coisa pública. Não é de se estranhar que a democracia americana, que tanto causara a admiração de um francês no século XIX, hoje se assemelhe muito mais a uma oligarquia.

            Prezados leitores, independentemente da origem dessa falta de confiança social que tantos males causa, não podemos deixar de notar isso no Brasil. Poderia falar aqui da nossa democracia de mentirinha, em que elegemos a cada quatro anos representantes no Legislativo e administradores no Executivo que se parecem muito uns com os outros, e que usam e abusam da promessa de renovação sem de fato fugirem do script de corrupção + incompetência a que estamos acostumados.   Mas escolho dar-lhes um exemplo mais prosaico, o modo como as praças públicas no Brasil são normalmente terra de ninguém. Todos os dias rumo ao restaurante passo em frente a um local com quadra de futebol reformado pela Prefeitura de São Paulo, que instalou aparelhos de ginástica e explicações sobre alongamento. Depois de uma semana que a praça novinha em folha tinha sido entregue, vândalos já tinham arrancado os cestos de lixo e já havia sujeira por tudo quanto é lado.

            Em suma, em nosso país, muito provavelmente diria eu por causa da chaga da escravidão, temos uma grande dificuldade de sentirmo-nos individualmente como partes de um todo e de nos responsabilizarmos por nossa participação nesse todo. Preferimos transferir a responsabilidade para outros, para líderes carismáticos, para salvadores da pátria a quem podemos idolatrar num momento e apedrejar no outro. Daí porque acho muito bem-vinda qualquer investigação que lance luz sobre a escravidão, que foi o grande negócio capitalista durante vários séculos. Por outro lado, saber mais sobre a instituição que moldou o Brasil não deveria nos levar a ter ganas de vingança e querer reparações dos países que lucraram com o comércio de gente. Afinal, os europeus organizaram e globalizaram uma atividade econômica que já existia na África, praticada pelos próprios africanos. Portanto, achar culpados do sofrimento de milhões de pessoas não é tão simples assim. Além do mais, devemos ser sensatos o suficiente para não sermos anacrônicos e julgarmos o passado com os olhos do presente. Assim como hoje achamos imoral o tráfico de escravos conforme foi praticado para a colonização da América, daqui a algumas décadas talvez poder-se-á dizer que comprar I-phones da Apple produzidos por chineses que trabalham por salários aviltantes ou fazer pedidos on-line no site da empresa Alibaba Express é algo ignominioso, porque acaba contribuindo para o fechamento das indústrias locais. E no entanto, quantos de nós estamos prontos a condenar os europeus traficantes de escravos e achamos normal participarmos da economia globalizada do século XXI?

            A saída para esses dilemas é sempre o esclarecimento. Sabermos o que de fato foi a escravidão, como de fato funciona a rede global de suprimentos no mundo atual é crucial para fazermos nossas opções morais. O que não podemos é por meio de investigações como as empreendidas pela Cooperaxion eleger os bons e os maus, os bodes expiatórios para serem imolados no altar da indignação seletiva e da hipocrisia. Preto no branco, explicações já, mas que nos levem a um conhecimento nos moldes socráticos, de maneira a renunciarmos ao egocentrismo e sabermos nosso lugar no todo.

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