A dívida pública, que de início era uma segurança para os governos, por fazer com que muitas pessoas se interessassem pela tranquilidade pública, caso seja excessiva tende a tornar-se um instrumento de subversão. Se os governos pagam essa dívida por meio de pesados encargos, eles perecem por tornarem-se odiosos à população. Caso não paguem, os governos serão destruídos pelos esforços do mais perigoso de todos os partidos; quero referir-me a um amplo e descontente interesse financeiro, prejudicado mas não dizimado. Os homens que constituem esse interesse buscam sua segurança, em primeiro lugar por meio da fidelidade do governo, em segundo lugar pelo poder desse governo. Caso considerem velhos regimes decadentes, depauperados e com sua energia vital enfraquecida, de maneira que não tenham o vigor suficiente para seus propósitos, eles podem vir a procurar novos governos que tenham mais energia; e essa energia será derivada não da aquisição de recursos, mas de um descaso pela justiça.
Edmund Burke (1729-1797) em “Reflexões sobre a Revolução na França”
Prezados leitores, em um artigo anterior eu já citei o filósofo nascido em Dublin que foi um profundo crítico da Revolução Francesa. Faço-o pela segunda vez, e de maneira mais extensa, porque um grande pensador nunca fica desatualizado e sempre lança luz sobre fatos presentes, passados e futuros para quem quiser e souber adaptá-lo. Ao ler Burke não me canso de traçar paralelos entre a situação que ele descreve, especificamente as medidas tomadas pela Assembleia Nacional da França no início da Revolução naquele país no fim do século XVIII, e nossas atribulações do século XXI.
Entre as várias críticas que Burke faz aos revolucionários, a mais apaixonada é aquela contra o confisco dos bens da Igreja e da nobreza. Como bom conservador, ele considera que o atentado à propriedade é um atentado à liberdade e à justiça, e a justiça deve ser sempre a prioridade número um de qualquer governo civil que seja digno do nome. Burke vê no confisco uma medida tomada como resultado de uma aliança espúria entre o setor financeiro, interessado em tornar os bens confiscados lastro para a emissão de títulos públicos que permitisse ganhos especulativos, ea população em geral, sedenta de vingança contra seus opressores seculares.
Tal aliança é possibilitada pelos iluministas ateus que denunciavam os abusos do clero e da nobreza e é mal vista por Burke, porque leva a medidas injustas, isto é, a uma violência a direitos de propriedade garantidos até então por leis há muito estabelecidas a que todos os cidadãos estavam acostumados e que ditavam seu comportamento.O confisco da propriedade de uma hora para outra, tornando o que era perfeitamente legal em algo revoltante, é para Burke uma violência que só pode levar à substituição de uma tirania por outra. Em suma, o pensador político irlandês é um ferrenho defensor do que hoje denominaríamos como segurança jurídica e que ele chamava de justiça imparcial, aplicável a todos os cidadãos indistintamente, sem que um determinado grupo seja feito bode expiatório de culpas passadas, presentes e futuras de membros individuais.
Pois bem, tais palavras fizeram-me refletir sobre o drama que a Argentina vive neste momento. Na segunda-feira dia 16 de junho a Suprema Corte dos Estados Unidos confirmou a decisão do juiz Thomas Griesa de Nova York que decidiu que a Argentina deve pagar integralmenteUS$ 1,5 bilhões de dólares devidos aos fundos abutres. Este nome nada lisonjeiro deve-se ao fato de a especialidade desses fundos é a de comprar a preço de banana papéis de empresas e governos à beira do colapsoe de tentar cobrar o dinheiro judicialmente. É umnegócio de risco que aposta em uma decisão favorável em jurisidição que protege o interesse dos credores. Foi o que aconteceu nesse caso, um juiz americanodando ganho de causa a donos de títulos da dívida do governo argentino que se recusaram a entrar em negociação e aceitar receber menos, como outros fizeram.
Há várias faces dessa tragédia para a Argentina. Em primeiro lugar, o país teria que pagar US$ 900 milhões de dólares até dia 30 de junho para os credores que aceitaram a renegociação, mas se o fizer em Nova York correrá o risco de ter esse dinheiro embargado para garantir o pagamento dos US$ 1,5 bilhão e portanto entrar em moratória por não honrar os compromisso assumidos desde 2001, quando de sua moratória. Em segundo lugar, se a Argentina decidir pagar integralmente os credores que foram à justiça corre o risco de abrir uma caixa de Pandora, porque de acordo com a cláusula RUFO (sigla em inglês para Rights Upon Future Offers), válida até o final deste ano, teria que estenderas condições oferecidas aos credores reclamões aos credores que haviam aceito as condições menos vantajosas oferecidas anteriormente pelo país. Em terceiro lugar,qualquer que seja a decisão do governo argentino, negociar com os credores que foram à justiça, atendê-los totalmente ou ignorá-los totalmente, o fato é que a Argentina corre o risco de se tornar um pária nos mercados internacionais e ter cada vez mais dificuldades de captar dinheiro, algo fundamental para nós latino-americanos, que não nos destacamos por sermos grandes poupadores.
A lição desse lamentável episódio é que vivemos em um admirável (ou abominável) mundo em que o destino de uma nação de 43 milhões de habitantes é decidido por um juiz de direito privado preocupado exclusivamente com a execução de contratos. O fato é que o governo argentino, à semelhança do nosso, não prima por altos padrões de eficiência, e deixou que as finanças públicas ficassem descontroladas. Na prática, considerando as restrições cada vez maiores que o direito internacional coloca ao calote soberano dos países, as consequências das más decisões dos administradores públicos serão suportadas pelo povo em geral, em termos de recessão e desemprego. É o que já acontece com a Grécia, obrigada pelos seus compromissos com a União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacionala impor medidas draconianas de contenção de gastos públicos, para que a dívida fosse paga. De maneira análoga, para que o lucro dos fundos de investimento seja garantido, o cinto dos argentinos terá que ser apertado ainda mais.
Prezados leitores, Lionel Messi salvou a Argentina no jogo contra o Irã com um gol tirado do fundo da cartola do craque. É verdade que brasileiros e argentinos são rivais no futebol, é verdade que os argentinos que invadiram o Rio de Janeiro não estejam gastando os reais que fariam com que a Copa nos desse lucro, como prometeu Dona Dilma, afinalnem em hotel eles se hospedam, dormindo em ônibus e peruas. A despeito de tudo isso, precisamos torcer para que a Argentina ache uma solução de última hora e seja salva pelo gongo aos 45 minutos do segundo tempo, pois os destinos de brasileiros e hermanos estão intimamenteligados: somos o principal parceiro comercial da Argentina, que destina 20% das suas exportações a nós, e a Argentina é o nosso terceiro principal parceiro, a quem destinamos 7,5% de nossas exportações.Em suma, que a Argentina ache seu Lionel Messi no campo econômico e político como achou no campo futebolístico!
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