Porto de águas turbulentas no Uruguai
Brasil apóia projeto de terminal que pode contar com recursos do BNDES e de fundo do MERCOSUL e desviar carga do Brasil
Manchete do caderno de Economia do jornal o Globo de 20 de abril sobre a construção do porto de Rocha no Uruguai que contará com financiamento de um bilhão de dólares do BNDES.
Prezados leitores, há certos assuntos que passam despercebidos na imprensa, tanto mundial quanto nacional. São assuntos enfadonhos, enfadonhos porque cheios de detalhes incompreensíveis para quem não tenha conhecimento técnico, e principalmente porque não envolvem pessoas que possam ser idolatradas ou vilipendiadas. A imprensa nacional dá atenção às suspeitas de corrupção na Petrobrás porque há culpados, há pessoas que podem ser condenadas pela justiça. O principal atrativo da campanha eleitoral no Brasil é o fato de ser uma dança das cadeiras, os candidatos sofregamente procurando meios de serem mais rápidos do que seus concorrentes, e todos medindo seus passos ao ritmo da música, no caso das pesquisas de intenção de voto. Quando a música para, ou seja, quando as pesquisas de intenção são divulgadas e fica-se sabendo quem desceu e quem subiu, é preciso rearranjar os assentos, o que significa descobrir novos podres dos adversários, divulgá-los na imprensa “séria” e retomar a dança.
Não se iludam a respeito da imprensa internacional, como se ela fosse mais respeitável e enfocasse os assuntos enfadonhos. Longe disso. O importante é o neoeurasianismo do diabólico Putin que quer fazer renascer a União Soviética por meios tortos, como se os Estados Unidos não estivessem em plena expansão pelo mundo, fazendo guerras no Oriente Médio, na África, “protegendo” seus aliados na Ásia contra a China e ajudando os inimigos de Maduro na Venezuela. Mas meu foco não são as diferenças de tratamento dadas pela imprensa aos Estados Unidos e à Rússia, algo de que já falei aqui neste espaço. Meu foco hoje são os tais dos assuntos entediantes, que ficam escondidos nas páginas internas dos jornais ou na parte de baixo, quando muito, dos sites de notícias. Meu objetivo é tentar mostrar como o que é aborrecido tem importância vital para nossas vidas cotidianas.
Começo com a pauta internacional. Vocês já ouviram falar do Tratado de Comércio Transatlântico (TIIP na sigla em inglês) entre Europa e Estados Unidos? Talvez não e, por favor, não se sintam culpados pela ignorância, pois não é para vocês terem ouvido falar: por motivos estratégicos, tudo está sendo negociado na surdina, à margem dos parlamentos nacionais dos países europeus e dos Estados Unidos. Quando as cláusulas tiverem sido negociadas pelos doutos representantes comerciais elas serão todas, de uma vez, submetidas ao Parlamento Europeu para ratificação, mas então talvez seja tarde demais para que haja algum controle externo. Os deputados provavelmente se perderão na miríade de detalhes e não terão condições de verificar o impacto do que for decidido na vida dos cidadãos comuns. E muito provavelmente o objetivo é mesmo este, de enfiar goela abaixo o pacote pronto, neutralizando qualquer tipo de reação.
E por que um tratado de comércio deveria ser fonte de preocupação? Afinal, um acordo dessa envergadura criaria um mercado comum de 820 milhões de consumidores, representaria metade do PIB mundial e faria o PIB da União Europeia e dos Estados Unidos aumentar meio por cento ao ano, criando dois milhões de empregos, de acordo com seus defensores. O problema é que o diabo está nos detalhes, tão técnicos e tão entediantes. O TIIP irá não só diminuir as barreiras alfandegárias, isto é as tarifas aduaneiras, mas também levará a uma harmonização das barreiras não alfandegárias ao comércio, que são as normas ambientais, agrícolas, trabalhistas, fitosanitárias. De acordo com as ONGs européias que denunciam o acordo, isso significará na prática menos direitos trabalhistas, menos proteção contra alimentos transgênicos e contra frangos e gado cheios de hormônios que podem causar malefícios à saúde, entre outras salvaguardas.
Mas a grande revolução do TIIP, o grande cavalo de Tróia que deixa aqueles que se preocupam com o futuro da democracia ocidental com os cabelos em pé, é a parte jurídica. O principal meio de solução de disputas será a arbitragem. Para quem não sabe, arbitragem é julgamento realizado por um juiz indicado pelas partes que segue a lei que as partes tiverem escolhido previamente. Isso significa que uma empresa multinacional que tiver um litígio com um Estado Nacional qualquer não será julgada pela lei do local, por juízes locais de acordo com o princípio da supremacia do interesse público e todas aquelas garantias e privilégios de que normalmente os Estados tradicionalmente gozaram porque fornecem serviços públicos, isto é que beneficiam toda a coletividade do país. A arbitragem permitirá que uma empresa brigue de igual para igual com um país e ganhe. Aliás, isso já aconteceu aqui na América Latina, quando o Equador foi condenado a pagar 1,77 bilhões de dólares à Occidental Petroleum, que conseguiu fazer com que seu caso fosse julgado em Washington por um tribunal de arbitragem ligado ao Centro Internacional para a Resolução de Conflitos sobre Investimentos (ISCID em inglês) como uma violação do tratado de investimentos entre os Estados Unidos e o Equador. Detalhe: a própria empresa violara o contrato com o governo do Equador que achou por bem tomar a decisão política de encerrá-lo.
Perceberam a revolução que a arbitragem traz? A transferência de poder dos Estados para as transnacionais? A irrelevância de todas as normas locais quando elas estiverem em desacordo com as normas contidas no tratado de livre comércio? Para que elegermos representantes no Legislativo e mandatários no Executivo se tudo o que eles fizerem em termos de criação de leis e de realização de políticas públicas terá que se conformar com as normas hierarquicamente superiores, porque internacionais, colocadas nos tratados de livre comércio?
A essa altura devo dizer que uso a segunda pessoa do plural de propósito. Se o TRIIP é um assunto que diz respeito aos europeus e americanos, o acordo que está sendo negociado entre o MERCOSUL e a União Européia diz respeito a nós brasileiros. E aqui enfoco a pauta nacional. Essas negociações não recebem lá muita atenção da nossa imprensa, afinal são coisas técnicas que devem ser deixadas aos especialistas. Mas elas estão caminhando, e poderão ter muitas das conseqüências do TIIP. E pior, nosso governo já parece estar tomando decisões levando em conta os interesses do MERCOSUL muito mais do que os do Brasil individualmente. O porto de Rocha, no Uruguai, com certeza tornará nossa soja mais competitiva por facilitar o acesso à Ásia. Mas e os outros setores econômicos brasileiros, ou seja, aqueles não ligados à exportação de commodities? Será que não seriam mais beneficiados se investíssemos esse dinheiro em nossos próprios portos?
Prezados leitores, fiz muitas perguntas e não dei nenhuma resposta. As respostas seriam mais bem dadas se houvesse discussão em nosso Congresso e em audiências públicas sobre os prós e contras dos tratados de livre comércio que tanto impacto têm sobre nossas vidas. Mas infelizmente eles são tratados como irrelevantes porque técnicos e chatos. Enquanto isso, na dança das cadeiras, elegeremos novos palhaços para o picadeiro que cada vez mais serão meras marionetes comandadas pelos que mandam no mundo.
2 Responses to Sobre coisas chatas e irrelevantes