Entre todos os povos, foram os gregos quem mais belamente sonharam o sonho da vida
Johann Wolfgang Goethe, após visitar o sul da Itália e a Sicília em 1787
Prezados leitores, antes de mais nada devo fazer uma pequena retificação. Há duas semanas eu falava do Grand Tour da aristocracia europeia no século XVIII, mas ao menos na Inglaterra este movimento teve início no Renascimento e amadureceu no século XVII. Havia um motivo prático na origem: tais viagens constituíam um treino para o exercício futuro de posições no governo. De fato, a vitória do Estado sobre a Igreja, a qual tinha tanto se encarregado dos negócios oficiais, aumentou as oportunidades de emprego das elites, assim como a expansão dos recursos administrativos e das ambições do governo. Tais oportunidades trouxeram desafios também: os monarcas precisavam de conselheiros, funcionários e diplomatas que fossem capazes e tivessem conhecimento das coisas.
Assim, os nobres incitavam seus filhos a irem além dos prazeres da caça e a se educarem. Um dos componentes dessa educação eram as viagens. Os viajantes eram orientados não só a olhar a paisagem ou maravilharem-se com a esquisitice dos estrangeiros, mas procurar informarem-se a respeito da organização política e das lutas de poder, da capacidade militar dos locais visitados. Esses conhecimentos não só alimentariam e alargariam a mente dos futuros governantes, mas seriam imediatamente úteis aos pais desses jovens na sede do governo inglês, em Whitehall. Isso tudo eu tirei de uma crítica sobre um livro recém publicado na Inglaterra, The Jacobean Grand Tour: Early Stuart Travellers in Europe.
Esse intróito sobre os objetivos utilitaristas dos primeiros turistas tem dois propósitos. Serve para lhes comunicar que meu sonho siciliano terminou na sexta-feira e para fazer uma humilde comparaçãodo meu Grand Tour com aquele dos séculos passados. Não volto ao Brasil para ocupar algum cargo no governo ou para fazer relato das maquinações dos inimigos do meu país.Por outro lado, pensar nas semelhanças e diferenças sempre expandem os horizontes de cada um. A começar pelo que é comum, tanto na Sicília quanto aqui no Brasil o luxo e o lixo convivem lado a lado. Os templos gregos, palácios, igrejas, jardins convivem com lixo jogado nas ruas e terrenos baldios, e com os rios transformados em esgoto. Houve momentos da minha viagem em que eu pensei estar nas partes mais sujas de São Paulo.
Tal convivência dos opostos não é de se estranhar, considerando a situação econômica por que passa a Itália. Um siciliano que encontramos no trem nos contou que 50% da população está desempregada. Não sei o quanto a estatística é confiável, mas de qualquer forma ele deu um exemplo pessoal: ganha 1.600 euros por mês como professor, mas precisa viajar todos os dias de Palermo a Agrigento (duas horas de trajeto) para poder trabalhar, caso contrário ficaria desempregado. De qualquer forma, as pessoas com as quais conversamos foram unânimes em dizer que o euro foi um desastre para a Itália. Ainda que não soubessem precisar a razão, enfatizavam sempre que depois da introdução da moeda única nada tinha sido como antes. Por lá há crianças brancas pedindo dinheiro na rua, homens brancos de olhos azuis sentadosna calçada mendigando. Um velhinho branco abordou-me em uma igreja pedindo dinheiro e perdi a conta das vezes em que vieram oferecer-me flores, isqueiros e outros badulaques na rua.Mencionei a brancura dessas pessoas para enfatizar que a pobreza não está circunscrita a minorias de imigrantes de países subdesenvolvidos da África.Portanto, em muitas ocasiões eu assisti a um filme com cujo roteiro já estou acostumada como brasileira.
No entanto, houve algo com o qual não estou acostumada e que me fez ter uma nova visão do Brasil, desmistificar a ideia de que somos um país católico. Perto dos sicilianos, somo uns ateus ou pagãos, a depender do ponto de vista. O catolicismo está impregnado no cotidiano das pessoas, a começar pelo respeito ao domingo, domenica. Lembro que quando criança domingo era dia de descanso, tudo ficava fechado, era um dia de paz e tranquilidade. Hoje nas grandes cidades brasileiras domingo é dia de consumo, um dia praticamente como outro qualquer. Na Sicília, mesmo na capital, Palermo, domingo continua a ser o dia em que o Criador descansou após seus monumentais trabalhos da semana.A vida do turista sempre se complica nos domenicas, porque há menos ônibus, muito menos restaurantes. Só as igrejas funcionam de manhã, para a missa.
Mas a religião não se manifesta só no culto ao ritual dominical. Há o culto aos santos, colocados em altares nas ruas, nas lojas, nas casas, há as rezas puxadas normalmente por uma mulher ao final da tarde, as procissões para celebrar a vida dos santos. Acompanhei uma delas, a de São Gerlando, pelas ruas de Agrigento, cidade da qual ele é patrono, tendo lá morrido em 25 de fevereiro de 1100: o apresentador contava as peripécias de Gerlando contra os sarracenos, enquanto as pessoas vestidas a caráter como personagens da Idade Média subiam as estreitas vielas da cidade rumo à Catedral, onde estão as relíquias do santo. Aliás, relíquias é o que não faltam na Itália: eu vi o ombro direito de Santa Lúcia, um seu vestido vermelho, o corpo de Sâo Luís na Catedral de Monreale. Realmente, o catolicismo na Sicília está em outro patamar em termos de intensidade.Apesar de a Igreja ter perdido grande parte da sua clientela, o fato é que o catolicismo não foi substituído por nenhuma outra religião, como aconteceu no Brasil com a ascensão dos evangélicos. Devotos ou não, os sicilianos continuam fiéis à Igreja Católica Apostólica Romana.
Por fim, devo mencionar outra experiência que tive nessa viagem que me fez refletir sobre o Brasil. Na minha longa viagem de volta eu tive que tomar um avião de Palermo para Barcelona, e lá fiquei algumas horas, tempo suficiente para andar por dois parques à noite, ver as pessoas fazendo cooper, andando de bicicleta, passeando com o cachorro, tudo de graça, com direito a apreciar a natureza, sentir o cheiro das plantas e olhar a lua. Na minha Sâo Paulo diversão gratuita em parques públicos é muito difícil. As pessoas de “bem” têm como lazer ir ao shopping center, ao cinema, à praia, todas atividades que demandam dinheiro. Parque é normalmente o lugarem que pobre faz churrasco porque não tem aonde ir. É muita exclusão social, um verdadeiro apartheid, que na minha opinião muito contribui para nossa violência: os lugares públicos em São Paulo estão cada vez mais esvaziados e menos acessíveis. O Parque Burle Marx, onde há a última faixa de floresta nativa na várzea do Rio Pinheiros, está sendo assediado por construtoras, e os moradores da região estão lutando para conseguir barrar os empreendimentos e garantir o acesso de todos a um espaço tão privilegiado, nem que seja teórico, considerando a falta de transporte fácil até lá.
Prezados leitores, é com essas reflexões sobre os pontos fortes e fracos da Sicília que finalizo meu Grand Tour. Na semana que vem a filha pródiga, retornada mentalmenteao Brasil,voltará a se ocupar dele, tendo acumulado uma grande dose de cores, cheiros e formas de que com certeza lembrarei pelo resto da minha vida.