Prezados leitores, parece que o que eu temia, temor este que já expressei aqui neste espaço, já está ocorrendo: a corrida presidencial será dominada por factóides. Antes de mais nada preciso esclarecer o que entendo por factóides para que o que escreverei aqui faça sentido. Factóides são grandes acontecimentos, grandes no sentido de terem repercussão na mídia, mas que no frigir dos ovos têm muito pouca relevância para nossos destinos enquanto nação. O factóide mais recente, é claro, a questão dos rolezinhos, explorada ad nauseam na imprensa escrita, falada e digitada.
Faço questão de não tecer opinião sobre este assunto. Em primeiro lugar, não quero aborrecer meus leitores com mais uma opinião. Pessoas mais doutas do que eu, cientistas sociais, psicólogos, sociólogos, antropólogos, filósofos já se pronunciaram, portanto acredito que minhaspalavras seriam vãs. Em segundo lugar, devo confessar que não tenho muito interesse por adolescentes, e parece que os adolescentes compõem a maior parte dos participantes dos “little strolls”, como o New York Times, que apresentou um artigo sobre o fenômeno em sua edição eletrônica no domingo dia 19, os traduziu para o inglês. Para ser mais precisa, tenho trauma de adolescentes. Minha carreira de professora de inglês foi abortada por minha incapacidade de lidar com esse grupo. Fui demitida de uma escola de ensino de línguas depois de a diretora ter verificado in loco que eu era incapaz de lidar com as piadinhas, os desafios e a zombaria dos meus alunos. Eu era feita de palhaça o tempo todo e era incapaz de lidar com a situação, principalmente porque minha memória do meu próprio período de adolescente não tinha nada que consistisse em fazer troça dos meus professores.
Foi uma época difícil da minha vida em que minha auto-estima desceu a níveis preocupantemente baixos por causa de crianças mimadas e enfadadas, sobre as quais todo o meu esforço pedagógico não tinha a mínima influência. Tomei uma tal ojeriza de educação que hoje não consigo nem participar de um programa de aulas voluntárias promovido pela empresa em que trabalho, que oferece aulas a alunos de escola pública. Simplesmente, minha memória dos aborrecentes olhando-me de alto a baixo como se eu fosse uma parva, a total falta de interesse em minhas tentativas de lhes ensinar a língua de John Milton e Shakespeare ficaram tão marcadas em mim que considero a educação algo totalmente impossível no mundo de hoje, porque ela pressupõe uma hierarquia, i.e. alguém que sabe transmitindo a quem não sabe, e a noção de .hierarquia é desprovida de sentido na era da internet e do acesso fácil às informações.
Por essas razões, é-me impossível falar sobre adolescentes, seres alienígenas em meu pequeno mundo reacionário. Por outro lado, não posso deixar de constatar que os rolezinhos farão parte da pauta da campanha presidencial e novamente teremos as esteréis disputas Fla-Flu: os favoráveis aos adolescentes e à sua liberdade de expressão, e os favoráveis aos shopping centers e seu direito de propriedade, os democratas que lutam contra o racismo e pela ascensão da classe pobre e as elites temerosas do contato com a plebe. Nesse entrementes, aquilo que na prática terá influência sobre a vida de todos os brasileiros será colocado para escanteio. Vou falar de dois assuntos que infelizmente não serão abordados como se deve até outubro porque em larga medida são intratáveis, isto é, requerem uma abordagem complexa demais para serem tratados no circo da campanha presidencial.
Em primeiro lugar está a questão das concessões que o governo federal está fazendo para resolver o gargalo da infraestrutura. Está claro que há um problema sério de gestão que se não for resolvido fará com que nosso crescimento econômico continue atravancado. Leio no Globo do dia 19 de janeiro que 402 obras que deveriam ter sido entregues ainda não foram. De quem é a culpa? Das agências reguladoras que não fiscalizam e não punem como deveriam, ou dos encarregados da elaboração dos editais de licitação, que estabelecem prazos e valores de investimento irrealistas? O fato é que o desempenho das concessionárias de rodovias não atende as necessidades do país. Propostas para solucionar o problema deveriam ser colocadas pelos candidatos, mas provalvemente o máximo que podemos esperar é que todos eles prometam mais investimentos, mais PACS, quando a questão principal é o modo como os investimentos são de fato feitos.
Em segundo lugar, há a nossa exposição ao dólar, por causa das reservas cambiais que respaldam nossa própria moeda. Os mais espertos, leia-se os asiáticos, já se deram conta de que a derrocada do dólar é, para usar o jargão jurídico, um evento futuro e certo, com termo inicial, sem estar sujeito a nenhuma condição. O Banco Central americano tem comprado títulos do Tesouro americano à razão de um trilhão de dólares por ano, despejando as verdinhas no mercado para que os grandes bancos, que fizeram apostas temerárias e irresponsáveis em derivativos tóxicos, possam ter liquidez e apresentar números azuis no balanço, do contrário teriam que reconhecer que seus ativos não valem nada. Para manter a ilusão de que o dólar ainda vale alguma coisa após uma enxurrada que já dura anos, o FED americano manipula o mercado do ouro, vendendoderivativos do metal para reprimir a demanda colocada por aqueles que querem um refúgio seguro para seu dinheiro.
Prezados leitores, vocês sabiam que o ouro do Ocidente está sendo transferido para a Ásia? Os asiáticos não se contentam com um derivativo que lhes diz que em algum dia em algum lugar eles terão direito a ter determinada quantidade de ouro à sua disposição. Eles querem o ativo físico, tangível, e os bancos conseguem honrar seus compromissos comprando derivativos daqueles que acreditam que o preço do ouro vai cair e retirando o ouro daqueles que se deixam enganar e confiam que um dia eles verão o metal dourado na sua frente simplesmente mostrando seu título. A demanda asiática é tanta que a quantidade de instrumentos financeiros com lastro em ouro é muito maior do que o ouro físico realmente existente. Uma prova disso é que a Alemanha pediu ao Banco Centralamericano a repatriação de suas reservas em ouro custodiadas pelo Federal Reserve Bank e este concordou em entregar 300 das 1500 toneladas ao longo de sete anos. A Venezuela, tão vilipendiada pelos bem pensantes, conseguiu repatriar as 160 toneladas de ouro que estavam com o FED, pois pediu antes. Todas essas informações eu tirei do artigo “The Hows and Whys of Gold Manipulation”, facilmente encontrado na internet e escrito por dois economistas americanos, Paul Craig Roberts e Dave Kranzler.
Enquanto aqueles que percebem que o poderio econômico americano, baseado no dólar, está se esfacelando se protegem, nós brasileiros, e nossos governantes, ficaremos na turma dos cornos mansos, os últimos a saber e pagaremos um alto preço por isso. Mas claro, há assuntos mais importantes a serem tratados na eleição, as acusações mútuas de ladroagem que farão os candidatos, a questão premente de dar opções de lazer a adolescentes que têm direito a serem felizes. No fim, por vias tortas eu acabei dando minha opinião sobre os rolezinhos, e acabei na prática dando-lhes tanta importância quanto foi normalmente dado, mas se o fiz, fiz sob protesto e peço aos leitores que levem isso em consideração.Vamos aos fatos e deixemos de lado os factóides se quisermos ter alguma esperança de que nossos grandes problemas serão tratados com seriedade.