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2014, o ano do descontentamento

Posted by on 05/01/2014

Deus criou o povo para trabalhar, arar o solo e cuidar da subsistência por meio do comércio; o clero, para as obras da fé; mas a nobreza para promover a virtude e conservar a justiça, para servir de espelho para os outros pelos seus atos e costumes

Trecho extraído do livro “O Outono da Idade Média” de Johan Huizinga

                Prezados leitores, antes de mais nada, devo recomendar-lhes a leitura do livro do qual tirei o trecho reproduzido acima. Comprei-o em uma feira de livros no ano passado em suaves prestações mensais. A edição brasileira de 2010 foi preparada com esmero pela editora paulistana CosacNaify em papel cuchê, com ilustrações coloridas, e o mais importante, com tradução direto do original em holandês. O subtítulo explica o tema: “Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos”. Apesar de ser um calhamaço de 650 páginas, pode-se lê-lo em pedaços, pois é composto de ensaios sobre determinados temas.

                O capítulo do qual tirei a citação intitula-se “ A Concepção Hierárquica da Sociedade”. Vocês provavelmente já devem ter ouvido falar que a sociedade medieval era estamental. Aprofundando essa ideia, Huizinga nos informa que não era simplesmente uma questão de haver três grupos na sociedade, o povo, o clero e a nobreza. Na verdade havia muito mais divisões, em termos de profissões, de idade, sexo. E cada indivíduo, de acordo com o grupo a que pertencia, usava determinadas roupas e cores e comportava-se de determinada maneira. Vou dar-lhes alguns exemplos prosaicos: as parturientes da nobreza tinham seu quarto decorado de verde quando iriam dar à luz e na época do resguardo. O luto variava de forma de acordo com a pessoa que morria, se o marido (seis semanas de cama), o pai ou mãe (nove dias na cama e o resto das seis semanas deveriam ser despendidas pela mulher sentada diante da cama, sobre um grande pano preto), o irmão mais velho (recolhimento ao quarto por seis semanas, mas não restrita à cama).

                O que me interessa nesse livro, além das curiosidades históricas, é mostrar-lhes que havia na época um ideal de comportamento. Cada um deveria cumprir um papel, assumir determinadas responsabilidades. A elite, representada pela nobreza, deveria servir de exemplo em termos de virtudes cavalheirescas de proteção dos pobres e fracos, de compromisso com a verdade, com a ética. É claro que não podemos ser ingênuos e achar que as elites daquela época cumpriam seu papel à perfeição. O povo comum era oprimido pelas guerras, pelos impostos cobrados para financiá-las, e elas serviam quase sempre exclusivamente aos interesses dinásticos da nobreza. A tal da honra do cavaleiro era muitas vezes um verniz que mal escondia o egoísmo, a sede de poder, de glórias, de conquista dos privilegiados. Mas essas fraquezas são fraquezas humanas presentes em todos os momentos da história.

                Independentemente da distância entre a teoria e a prática, os pobres mortais procuravam seguir o roteiro, fazer o que era esperado. Havia um horizonte, fugidio sempre, mas que não deixava de dar esperança às pessoas por um mundo melhor.Mais de seis séculos depois, acredito que temos muito mais motivos reais de termos esperança, afinal a tecnologia revolucionou nossas vidas de uma maneira maravilhosa, permitindo-nos viver muito mais do que qualquer daqueles homens do século XV poderiam sonhar. Para aqueles como eu que têm gosto pela história, não há como não nos sentirmos privilegiados por termos nascido no século XX, quando comparamos a existência cheia de medos daqueles indivíduos angustiados ante tantas preocupações, fome, doenças mortais, com nossa vida de pessoas que esperam viver no mínimo 80 anos.

                Por outro lado, é inegável que aquele ideal de comportamento é totalmente descabido no século XXI, e isto em minha opinião é uma grande pena. Nâo esperamos muita coisa das nossas elites, que elas nos sirvam de modelo de comportamento ético. Num certo sentido, nosso mundo é plano pelo fato de termos um mínimo denominador comum aplicado a ricos e pibres: aceitamos de bom grado que as pessoas mintam, trapaceiem, matem, enganem. Nossa reação não é estigmatizar os picaretas, asssassinos, estelionatários, chamá-los de bruxos ou pecadores, queimá-los na fogueira, submetê-los a torturas em nome da justiça, mas no máximo conceder-lhes o devido processo legal, fazê-los pagar indenização por perdas e danos e a depender do crime dar-lhes uma pena que depois de cumprida os torna aptos a frequentar a sociedade.

                  Não me entendam mal, não estou aqui a defender a volta das penas capitais, meu ponto é que nossa tolerância com desvios de comportamento é muito maior do que em outros tempos, justamente porque nos falta um ideal que estabeleça de maneira categórica o que é certo ou o que é errado. Em nossa sociedade, o comportamento ético, sem nenhuma conotação religiosa, fica no mais das vezes submetido a infindáveis discussões jurídicas que fazem a fortuna de advogados, mas não chegam a nenhuma conclusão que lave nossa alma e nosso sentimento de justiça.

                   Prezados leitores, teremos neste ano de 2014 eleições gerais no Brasil, mas alguém tem esperança de que haja um mínimo de apreço pela verdade? Nesta semana que passou os números da balança comercial foram divulgados para 2013, o pior dos últimos 13 anos, resultado de manobras contábeis que fizeram com que as importações de 2012 só fossem registradas no ano seguinte e que receitas de exportações de plataformas de petróleo que nunca deixaram o país fossem computadas. Ou seja, o resultado na verdade é uma grande mentira, e nós cidadãos comuns não temos acesso aos números reais. Como também não teremos acesso à verdade quando formos “informados” do programa político dos candidatos a presidente: será um amontoado de estatísticas, números usados pelos marqueteiros para vender seu produto. E quando o produto tiver sido desovado do estoque, depois da mega liquidação, o vendedor sumirá e não dará assistência no pós-venda quando a mercadoria começar a apresentar os vícios ocultos.

              Sozinhos com a mão no bolso, nós brasileiros, provavelmente sofreremos os efeitos de uma maxidesvalorização da moeda, já que nossas reservas internacionais têm diminuído para cobrir afalta de entrada de recursos externos. Em 2013 elas encolheram 2,8 bilhões de dólares. Como consequência, a inflação aumentará, mas o governo que tiver sido eleito, seja ele vermelho, azul ou verde, não se sentirá moralmente compelido a dar satisfações à população sobre a diferença entre o quadro róseo pintado pelos marqueteiros na época das eleições e a realidade da carestia e do aumento da nossa vulnerabilidade aos solvancos de uma economia global que está para lá de instável. Afinal, honra, decência são palavras antiquadas, absurdas em um mundo em que a manipulação é arma do sucesso e o sucesso é a medida de todas as coisas.

         Prezados leitores, futuros consumidores lesados dessa eleição presidencial: preparem-se para a desconversa, para as meias verdades, para o roto com dedo em riste contra o esfarrapado. O sucesso do presidente eleito em outubro, seja ele quem for, terá sido obtido à custa de nenhuma consideração real pelo bem comum. Só nos resta resignarmos com nosso descontentamento.

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