(…) as prefeituras são as que mais perdem receita com o represamento de tarifas como as de transporte urbano. Para compensar, elas aumentaram o IPTU, que não tem impacto direto na inflação, mas terá reflexo sobre aluguéis, que também pesarão no bolso dos brasileiros e sobre a inflação.
Trecho do artigo “Bomba-relógio armada” do jornal O Globo de 1º de dezembro de 2013
O objetivo do diálogo socrático, que frequentemente termina com um ponto de interrogação, é precisamente de permitir a Sócrates destruir o mestre no discípulo de modo a fazer nascer neste último o desejo de um verdadeiro controle sobre si mesmo, de uma έγχράτεια, levando-o a uma autonomia que somente o “conhece-te a mim mesmo” pode lhe proporcionar.
Trecho do livro Sócrates, de Jean Brun
Prezados leitores, proponho-lhes uma pergunta: quem de nós nunca enganou a si mesmo? Quem nunca contou histórias para si mesmo para justificar um fracasso, para continuar a ter fé que uma determinada pessoa vai mudar ou que uma determinada situação desfavorável no momento vá ser revertida e mudar para melhor? Confesso a vocês que já fiz isso e as historinhas da carochinha que eu inventei fizeram-me sofrer. Sofri porque calculei mal as dificuldades para que a mudança que eu esperava ocorresse, e quando a mudança não veio, quando tudo ficou como antes, eu caí das nuvens. Mas como dizia o grande Machado de Assis, é melhor cair das nuvens do que do terceiro andar…
De qualquer forma, decidi como uma escolha para minha pessoa particularmente e para ninguém mais, trilhar o caminho socrático do conhece-te a ti mesmo. No momento em que caí das nuvens decidi que é melhor olhar de frente para os pontos fracos e se não for possível melhorá-los, mudar de rota, seguir outro caminho em que meus pontos fortes possam sobressair. Mas digo que é uma solução pessoal porque nem sempre estamos preparados para lidar com certas verdades inconvenientes a nosso respeito, principalmente quando não enxergamos pontos fortes sobre os quais possamos nos apoiar. Por isso muitas pessoas continuam a contar histórias para si mesmas.
Acho que ocorre a mesma coisa com sociedades como um todo. Há certas sociedades que têm uma maior propensão para deixar-se enganar, outras preferem encarar a verdade. Talvez seja muito cedo para eu dizer isso, mas o resultado das manifestações que ocorreram no país em junho parecem indicar que nós brasileiros preferimos nos refestelar no conforto das ilusões. Vou tentar demonstrar minha afirmação.
Quantas vezes não ouvimos ao longo destes meses que avançamos, que a sociedade brasileira e sua nova classe média emergente mostraram estar mais exigentes em termos de serviços públicos de qualidade, blá, blá blá. Hoje no rádio ouvi de um publicitário que os protestos que ocorreram durante a Copa das Confederações foram positivos para as empresas que souberam aproveitar o momento. No calor da batalha, quando havia manifestações quase que diárias, os congressistas lançaram alguns factóides para darem alguma satisfação, como não aprovarem a emenda constitucional que de acordo com seus detratores iria diminuir os poderes de investigação do Ministério Público, e houve a proposta de uma mini reforma eleitoral que acabou aprovada. Mais importante, o preço da tarifa de transporte público não foi aumentado, o que era o objetivo inicial do movimento pelo passe livre. O povo unido jamais será vencido!
Passados seis meses das maiores manifestações populares desde a Campanha das Diretas, para quem como eu prefere encarar de frente os fracassos, eu diria que o resultado foi uma tremenda empulhação. Sim, é verdade que os preços da passagem de transporte público não aumentaram, mas isso é um mero represamento, para usar uma palavrinha do economês, para não acirrar os ânimos e a perda da receita já está sendo compensada, como em São Paulo, por exemplo, com aumentos no IPTU, ou seja, haverá uma mera transferência da conta dos usuários de ônibus para os proprietários de imóveis e para os que pagam aluguel. Alguns dirão que é uma justa distribuição de renda. Talvez. Mas de qualquer forma foi a solução mais fácil, empurrar a conta goela abaixo por meio do aumento de imposto que é objeto de lançamento de ofício pelo Estado, isto é, recebemos o boleto de pagamento em casa como presente todo começo de ano.
O difícil, e o que não foi feito, era encontrar uma maneira que não penalizasse a economia, que não tornasse bens e serviços mais caros, quem sabe tornando a Administração Pública menos corrupta, mais eficiente no gasto do nosso dinheiro, em outras palavras realizando um choque de gestão, para parafrasear o famoso discurso do finado Mário Covas na campanha presidencial de 1989, que pedia (sincera ou insinceramente eu não sei) um choque de capitalismo no Brasil, de iniciativa privada. O fato é que mesmo aqueles que foram beneficiados pela tarifa de transporte que não aumentou serão prejudicados de uma maneira ou de outra: o lojista que paga aluguel vai repassar o maior custo aos preços, o indivíduo que mora em apartamento alheio e anda de ônibus vai economizar em uma ponta para perder na outra. No frigir dos ovos, o congelamento do preço do transporte público não trouxe um benefício real para a sociedade como um todo: todos os protestos, as convocações pelo facebook, os twitters, os cartazes com frases de efeito, as faixas não foram capazes de mover uma palha em prol de um salto de qualidade na Administração Pública, que se vê premida pelos gastos a tirar o dinheiro de alguém para que o show possa continuar.
Agora estão nos prometendo que as novas concessões dos aeroportos e rodovias vão proporcionar a melhora nos serviços por que lutamos em junho. Não há dúvida que haverá recapeamento de estradas esburacadas, que o Galeão, Confins, Viracopos, Congonhas, ficarão mias bonitos, coloridos, espaçosos. Mas a que preço? O fato é que as tarifas aeroportuárias, os pedágios vão aumentar, afinal a Odebrecht e outras não celebrariam um contrato de concessão pelo nobre objetivo de dotar o país da infraestrutura tão necessária. Essas empresas estão no negócio porque o governo está vendendo esses direitos de exploração para fazer caixa e cumprir suas metas de superávit fiscal, dando uma satisfação ao público oportunamente para fazer efeito nas eleições. Aliás, isso não é novo: FHC passou várias estatais nos cobres para dotar o país das reservas em dólares necessárias para acolchoar o combate à inflação. O PT é uma versão genérica do PSDB: o princípio ativo é o mesmo, embora seja mais popular. O PSDB tem um ar de laboratório suíço que faz remédios de grife, o PT se vangloria do seu pé na Índia dos genéricos, mas o resultado é sempre nos enfiado goela abaixo.
As pessoas de bom senso dirão que não há alternativa às concessões, porque o Estado brasileiro não tem dinheiro. Ouço isso desde que me entendo por gente. Mas o fato é que esse tipo de modelo de Estado em penúria que pede ajuda da iniciativa privada para realizar tarefas que são suas, isto é, prestar serviços públicos, serve os interesses de certos grupos. Como diz o economista americano Michael Hudson, “o objetivo do setor financeiro sempre foi o de converter toda a renda, desde os lucros das empresas até as receitas tributárias do governo, em serviço da dívida.” E é o que estamos fazendo. O governo, na pindaíba, vende concessões a empresas que pegarão dinheiro emprestado dos bancos para fazer os investimentos prometidos em troca do direito de exploração. Para pagar os empréstimos e manter o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos (a que todo aquele que assina contrato administrativo tem direito) a concessionária vai repassar os custos para os usuários. Mais uma vez é a mesma história: teremos daqui há alguns anos melhor infraestrutura, mas a um preço escorchante que garante o lucro dos bancos, das empresas e de todos aqueles responsáveis pela gastança ineficiente do Estado.
Prezados leitores, posso estar sendo hiper realista, mas prefiro enxergar o lado negro das coisas para me preparar melhor para o que vem por aí como presente a nós brasileiros que exigimos melhores serviços públicos me junho: preços mais altos e menos dinheiro no meu bolso.