Os políticos e burocratas pensam que, com uma canetada e a aprovação de um projeto de lei, eles conseguem mudar o mundo para melhor. Mas a lei das consequências inesperadas significa que o oposto normalmente acontece.
Stephen Pollard, editor do jornalbritânicoJewish Chronicle
Há algumas semanas eu falei neste espaço da PEC 37, a emenda constitucional cujo objetivo era diminuir os poderes investigatórios do Ministério Público. Pois bem, ela finalmente foi aprovada no Senado, dando maior poder aos delegados de polícia para conduzir as investigações. Tenho um amigo de longa data, dos tempos da minha primeira faculdade, que é delegado da Polícia Federal e mandei-lhe um e-mail cumprimentando-o pela aprovação. Meu tom era meio jocoso, porque como escrevi neste espaço, acho que na verdade há uma grande fogueira das vaidades, um grupo querendo dar “carteirada” no outro.
Pois bem, ele respondeu-me de maneira muito séria e em tom de pregação. Em primeiro lugar, informou-me que os promotores pressionaram os senadores até não mais poder, incluindo ameaças de revelação de investigações que estavam sendo feitas contra certos senadores. Em segundo lugar, ele, como professor de direito que é, apresentou-me fortes razões para coibir o poder dos promotores: afinal, como permitir que o mesmo indivíduo que investiga faça a denúncia? Não há isenção nenhuma, e na pior das hipóteses, o que pode acontecer é o promotor escolher um desafeto, traçar um perfil das suas atividades e ver o que pode ser enquadrado em algum crime já tipificado.
Isso acontece muito nos Estados Unidos e um caso emblemático foi o de Dominique Strauss Khan. Seus inimigos políticos sabiam que ele sofria de priapismo, a mesma doença do finado Presidente Kennedy e se aproveitaram disso para armar-lhe a cilada da acusação de estupro. Mesmo o promotor tendo desistido da acusação criminal, depois de prender Dominique, o ex-presidente do FMI teve que pagar indenização à camareira do Hotel Sofitel. Infelizmente o projeto de Código de Processo Penal que tramita no Congresso Nacional toma emprestado do sistema americano uma das armas dos promotores americanos, a plea bargain, que aqui terá o nome de transação penal. Com o objetivo de dar uma solução rápida ao processo, o promotor oferecerá um negócio ao acusado: pena mais leve em troca da admissão da culpa. Nosso sistema, que busca a verdade, sofrerá uma grande revolução, pois a prioridade não será mais buscar quem realmente é inocente ou culpado, mas montar uma linha de produção de decisões que dêem algum tipo de satisfação à sanha de justiça da sociedade.
Eu realmente fiquei convencida pelas palavras desse delegado que uma investigação conduzida pela polícia dá ao acusado mais oportunidades de se defender, afinal ele pode comparecer à delegaciana presença de seu advogado, o advogado pode acompanhar a produção de provas etc. No caso dos promotores a investigação já sai com uma denúncia e se o juiz a aceita já há a instauração do processo criminal. De qualquer forma, por mais que haja justificativas para mudar a lei, o fato é que ficamos na situação de criarmos leis para controlar o mau comportamento do outro, quando a própria lei anterior já havia sido criada pelo mesmo motivo.
De fato, nossa Constituição Cidadã, este monumento de direitos e boas intenções que visava enterrar de vez o entulho autoritário, atribui um novo papel ao Ministério Público, de fiscal da lei, que teria entre outras funções “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (artigo 129, inciso III da Constituição de 1988). E uma das razões da remodelagem do parquet com certeza estava no fato de que os Constituintes tinham muito presente a memória do papel da polícia brasileira na ditadura, do DOPS do Delegado Sérgio Paranhos Fleury, órgão da Polícia Federal, na perseguição dos inimigos do regime. Fazia então sentido limitar os poderes dos delegados.
Mas hoje parece que os promotores também estão dado a abusos, daí a aprovação desta emenda constitucional. Não vou aqui tentar entender quem tem razão, os promotores se dizem os paladinos da luta contra a corrupção na administração pública, os delegados alegam que os promotores e procuradores-gerais escolhem provas a dedo e descartam aquilo que não lhes interessa de forma que quando a denúncia chega ao juiz para sua decisão o réu já está parcialmente condenado, pois não teve como refutar as provas na fase de investigação do MP.
Meu ponto é que nós no Brasilsomos mestres em criar leis e mais leis quando o buraco é mais embaixo. Se há investigações por promotores motivadas por rixas pessoais é porque há pessoas que se valem de sua posição de poder para fazer valer seus interesses. Qual seria a solução?Revogar o princípio da independência funcional do MP para que eles respondessem criminalmente se fizessem denúncias infundadas?Esta é a solução, uma sociedade em que todos desconfiam de todos e em que o controle de uns sobre os outros é cada vez maior?
Dou o exemplo da briga entre o MP e os delegados, mas poderia falar daMedida Provisória dos Portos cuja aprovação foi apresentada como imprescindível. Por acaso a canetada da Dona Dilma assinando mais alguma lei sobre concessões vai mudar nossa situação lamentável nessa área? De acordo com o Fórum Econômico Mundial, o Brasil fica em 107º lugar no ranking de infraestrutura geral, em 123º quando se trata de rodovias, e em 135º no caso dos portos. É óbvio que mais uma lei não mudará nada porque mesmo quando as obras são iniciadas é sempre uma lástima, em virtude de erros de concepção de projeto, erros de execução. A transposição do Rio São Francisco está parada, o concreto já cedeu ao calor em certas áreas, os animais caem nos canais vazios e morrem. A Transnordestina vai custar o dobro do previsto e demorar cinco anos a mais.E no entanto ficamos mesmerizados por medidas provisórias, leis, decretos, marcos regulatórios, agências reguladoras.
Quando digo que o buraco é mais embaixo, quero dizer que as leis não têm efeito nenhum, ou têm um efeito oposto ao esperado quando falta o básico: trabalho duro, formação moral e intelectual, sensatez, a boa vontade kantiana do “emprego de todos os meiosde que as nossas forças disponham” de forma que todos contribuam para a realização dos objetivos. Mas Kant é démodé eu sei, burguês demais para muitos dos nossos políticos, não só os que se dizem de esquerda aliás,pois todos foram embalados na faculdade pelo acalanto da luta de classes de Marx, tirar de um para dar para o outro: tiremos dos delegados para dar aos promotores (ou vice-versa), tiremos dos não cotistas para dar aos cotistas, tudo em meio a eleições majoritárias a cada quatro anos que se resumem a referendos plebiscitários sobre quem é contra e quem é a favor do bolsa família.
Em suma, menos leis e mais vergonha na cara é o que eu peço.
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