Acho que qualquer leitor do Montblatt sabe daquela história freudiana do Tânatos, o impulso da morte e Eros o impulso da vida, o lado negro e o lado brilhante de nós mesmos em constante embate. Quantas vezes não nos pegamos chafurdando na auto-comiseração, no derrotismo, no rancor contra tudo e todos, num sentimento exagerado de que o mundo nos é injusto? E no outro momento conseguimos dar a volta por cima e acreditar que para que as coisas dêem certo basta que queiramos lutar e perseverar sempre, basta que sempre optemos por nunca desistir, basta que estejamos sempre bem dispostos em relação àqueles que nos rodeiam.
Uso a palavra basta plenamente consciente de que tudo isso é muito óbvio, está em qualquer dos livros do Paulo Coelho, mas na prática requer mais do que a leitura atenta de algum livro de auto ajuda. É óbvio dizer que o segredo da vida é o de tentar prolongar os períodos “eróticos” pelo maior tempo possível e minimizar os efeitos do Tânatos que vira e mexe dá as caras, mas é o indivíduo sozinho com seus botões que tem que executar a receita, misturar os ingredientes na medida certa e aplicar as instruções no seu cotidiano, que nunca está previsto em nenhum lugar.
Todo este meu intróito de rasteira filosofia é para eu dizer que talvez os países também sejam assim, possuidores de uma faceta solar que luta constantemente coma faceta soturna. Vejo isso no Brasil de uma maneira gritante e isso me faz às vezes sentir-me pessimista em relação ao nosso futuro e outras vezes criticar a mim mesma por não querer ver coisas ululantemente positivas.
Como negar que o Brasil atualmente tem muitas coisas das quais se orgulhar? Há poucos dias Dona Dilma anunciou um plano que pode ter impactos fascinantes para o país. Ao custo de três bilhões de reais planeja-se enviar até 2015 100.000 estudantes brasileiros ao exterior para realizarem graduação nos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França e Itália. Imaginem o efeito cascata que esses brasileiros formados terão sobre nossa educação a longo prazo. Nas décadas de 1970 e 1980 levas de brasileiros formados nas melhores uiniversidades do país deixaram a terra do samba e do pandeiro em busca de novas perspectivas e nunca mais voltaram, o que foi uma perda inestimável em termos de riquezas que deixaram de ser produzidas. Agora formaremos nosso capital humano lá fora com a intenção de fazê-lo germinar aqui, produzindo conhecimento, emprego e bem estar. É um grande desenvolvimento sem dúvida, mesmo que represente por enquanto uma gota no oceano de lágrimas que é a educação no Brasil.
E o que dizer da nossa reputação internacional? Por acaso é possível negar que avançamos várias dezenas de kilômetros nessa trilha? Em 2003 a Petrobrás lançou títulos para captar financiamento e teve que pagar aos investidores taxa de 9,1%. Atualmente o retorno sobre os t[itulos lançados pela Petrobrás é de menos de 5%. Isso permite que empresas brasileiras com presença global como a Vale e a Embraere outras menos famosas possam fazer investimentos e alavancar seus negócios competindo de igual para igual com concorrentes de países desenvolvidos. Quando pensamos que em 1991 a Bombardier canadense entrou com reclamação contra o Brasil por causa de um programa de incentivo às exportações pelo qual nosso governo oferecia juros menores às exportadoras para compensá-las pelo custo Brasil, vemos como as coisas mudaram para melhor. Nossa reputação foi sendo construída aos poucos, com base na recusa sistemática em dar calotes em nome da soberania nacional, como tantas vezes fez nossa hermana Argentina. É claro que isso vem a um preço, a que eu mesma me referi algumas vezes neste espaço. Somos em larga medida dependentes de capitais especulativos para financiar nosso déficit público atraído por taxas astronômicas de juros pagas religiosamente. Mas o fato de que um fundo de pensão na Inglaterra possa achar hoje mais seguro investir nos títulos da Petrobrás do que comprar títulos do seu endividado governo éum benefício palpável que beneficia toda a população brasileira e não só as grandes campeãs nacionais, porque em um momento de emergência é de se esperar que nos beneficiemos de uma melhor boa vontade para captar recursos. O ideal seria que nós tivéssemos poupança interna e que quase nunca precisássemos do dinheiro da banca internacional e de investidores de fundos soberanos árabes, mas já que a perspectiva de conseguirmos nos transformar em uma nação poupadora é bem longínqua, melhor que tal captação ao menos seja em condições razoavelmente suportáveis.
O fato é que o Brasil pode se beneficiar da crise nos países ricos, vergados sob o peso de suas dívidas e de suas populações envelhecidas. Ofereçendo segurança aos investidores poderemos fazer florescer as áreas em que somos naturalmente competitivos, como energia, matérias primas, agronegócio. Mas é aqui que nosso lado Tânatos pode nos atrapalhar. A riqueza que conseguiremos produzir ficará restrita a algumas áreas, enquanto outras perecerão em razão de nossa exposição aos ventos da globalização. Nossa indústria está sentindo a pressão a cada ano e diminuindo sua participação no PIB. O que faremos a respeito disso? Continuaremos a ter uma sociedade extremamente desigual ou tentaremos usar o dinheiro conseguido nas áreas de sucesso para achar alternativas inovadoras para o resto que não se encaixou? No primeiro caso continuaremos a ser um país de segunda categoria, modernizado, mas não realmente desenvolvido, no segundo caso teremos dado um salto de qualidade e deixado para trás nossas tristes memórias de corrupção, pobreza, hiperinflação.
Eu seria ingenuamente pessimista ou otimista se optasse de maneira taxativa por um ou outro cenário, se me arvorasse em dizer que Tânatos ou Eros predominarão absolutamente. Talvez fiquemos no meio do caminho, tendo nossos bolsões de desenvolvimento verdadeiramente sustentável e ao mesmo tempo convivendo com mazelas seculares. Veremoso que a sorte ou melhor, nosso esforço coletivo, nos reserva.