Liberdade de expressão. O sentido dela está magnificamente resumido nas palavras de Voltaire: “posso não concordar com nenhuma das palavras que você diz, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”. Em suma, devemos desenvolver a virtude da tolerância, respeitar o que as pessoas têm a dizer, por mais que nossos valores sejam diametralmente opostos. Essa é uma das pedras de toque da cultura ocidental, não é mesmo? A liberdade de criticar, de inovar foi um dos fatores que permitiu a explosão de riqueza material e cultural nos países capitalistas desenvolvidos. Ultimamente, no entanto, acho que essa grande virtude ocidental tem sido tão usada e abusada que acaba sendo um dos signos da malaise espiritual dos nossos tempos.
Os leitores do Montblatt devem ter ouvido falar do grupo de punk rock feminista russoPussy Riot, formado de jovens mulheres que realizam apresentações em Moscou para manifestarem-se contra alguma coisa. A última delas foi na Catedral de Moscou em que começaram a cantar em protesto contra o Patriarca de Moscou, Kirill I, que segundo elas ama mais Putin do que Deus. Elas estão sendo agora processadas sob a acusação de blasfêmia e podem terminar na cadeia. Como seria de se esperar, vários artistas e celebridades ocidentais manifestaram-se a favor dasmoças, que estariam sofrendo perseguição política do regime autoritário de Putin.
Não sou lá muito fã de Putin pelo que foi feito na Chechênia, mas confesso que não pude deixar de concordar com algo que ele disse que eu tentarei parafrasear: se elas tivessem cantado punck rock em alguma sinagoga em Israel ou em uma mesquita de algum país muçulmano teriam sido imediatamente caladas por seguranças e acusadas de anti-semitismo ou racismo. Como seu show foi feito em uma igreja cristã, asopiniões se dividem de maneira radical: para os que acreditam em Deus e na Igreja Ortodoxa Russa foi uma afronta a um lugar sagrado, para os que acreditam na liberdade de expressão acima de tudo e de todos foi um protesto sadio, uma manifestação política que deve ser protegida e estimulada.
Decidir quem está com a razão depende dos valores de cada um e como não me furto a expor os meus na medida do que é relevante para desenvolver meus argumentos, digo logo que não vi nada de edificante em um bando de mulheres mascaradas fazendo uns trejeitos dentro de uma igreja. Sim, havia um conteúdo, mas quando estudei Letras aprendi que a forma cria seu próprio conteúdo e a forma não me agradou de jeito nenhum: vociferar vitupérios em frente a ícones religiosos nesses nosso tempos em que cada um quer ter seus cinco minutos de fama não importa como a mim parece apenas mais uma maneira de chamar a atenção para si e realizar o desejo narcíssico de ser o centro das atenções, tornando-se hit no you tube. Afinal, crítica verdadeira pressupõe diálogo e não há diálogo verdadeiro sem que uma parte tenha a capacidade de reconhecer que a outra possa ter valores diferentes que afetam o entendimento mútuo. Uma coisa é colocar-se contra a religião depois de entender o porquê da religião, quais são suas premissas etc. Outra coisa é chegar chutando a porta, fazendo pouco caso de símbolos e locais considerados de especial valor para os crentes de maneira explícita e acintosa. Para mim, longe de ser uma legítima expressão de ideias, é ao contrário prova cabal da total falta de ideias e devalores. Ou melhor, se valores há, não são aqueles que normalmente respaldavam os livres pensadores como Voltaire, que lutaram contra a prepotência dos poderosos: a busca de um melhor entendimento das coisas pelo debate, pelo cotejamneto de diferentes pontos de vista até chegar-se a um consenso. Parece-me que a intenção das moças russasestava longe disso: se quisessem realmente dialogar com o patriarca de Mosocu e tentar demovê-lo do seu apoio a Putin, elas teriam levado em conta suas sensibilidades religiosas e não teriam de maneira chocante ferido todas as convenções estabelecidas sobre como se comportar em umlocal de culto religioso.
Podem chamar-me de careta, mas muito do que passa por expressão do pensamento hoje no Ocidente resvala para a vulgaridade e a gozação fátuas, desprovidas de sentido. Aqui incluo o humor de um Rafinha Bastos, que declarou na TV que queria comer a Wanessa Camargo. Muitos lamentaram o processo aberto pela vítima da “comida”, em nome da ideia de que o humor para ser humor não deve poupar ninguém. De fato, uma das coisas mais abomináveis que surgiram nos últimos tempos foi a camisa de força do politicamente correto, que nos proíbe de usar determinadas palavras para com isso moldar aquilo que pensamos e sentimos em relação aos grupos vitimizados.
Por outro lado, não há como não ter nostalgia dos nossos grandes humoristas, dentre os quais posso citar dois ilustres recentes falecidos, Ivan Lessa e Millôr Fernandes. Quando o Ivan Lessa referia-se ao Brasil como o “bananão” ele não estava provocando o choque gratuito, pelo mero prazer de aparecer. Havia todo um universo de valores e sentimentos por trás: seu desencanto e ceticismo em relação a um Brasil que era incapaz de tomar decisões corajosas, que empurrava tudo com a barriga, que evitava conflitos a todo custo, mesmo que isso significasse a total paralisia e a não resolução de problemas seculares. As piadinhas de um Rafinha, em comparação, parecem-me dignas não de um verdadeiro humorista, que precisa ter indignação moral, mas de um mero bobo da corte, que imita tudo e todos apenas para manter o rei satisfeito.
Liberdade de expressão é fundamental para que possamos criticar, lutar e mudar o status quo. Liberdade de avacalhação, ao nivelar tudo e todos em torno do mínimo denominador comum da vulgaridade, só serve para fazer com que tudo continue como está.