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Cronicas academicas

Posted by on 29/11/2012

       Estou agora no quarto ano de faculdade e os alunos começam a focar seus estudos. É uma corrida atrás de créditos, em uma perfeita análise de custo benefício: qual matéria oferece o maior número de créditos a um custo menor, isto é, sem que seja preciso fazer muito esforço? Uma das campeãs é Cinema e Direito do Trabalho. São polpudos quatro créditos à sombra fresca do projetor, pois as aulas consistem em assistir a filmes e discutir sua mensagem jurídica subliminar. Como a discussão geralmente é algo perfunctório que só se faz quando necessário para conseguir algo prático, como nota e aprovação, fazer das aulas uma harenga de debates é um convite aos alunos entrarem na sala, darem uma disfarçada, assinarem a lista e picarem a mula. Eu até cheguei a matricular-me nessa matéria, mas cancelei o registro sentindo-me culpada. Acabei optando por Direito dos Seguros Privados, onde há não mais que dez gatos pingados.

          Essa matéria tem defeitos mortais. Em primeiro lugar oferece dois créditos, concorrendo no horário com a maravilhosa disciplina trabalhista. Em segundo lugar, o professor não é “cocha”, gíria estudantil para aqueles acadêmicos que facilitam a vida dos alunos em termos de notas, em parte por um resquício do lema dos anos 60 “é proibido proibir”, de acordo com o qual os alunos têm o direito de fazer o que querem com seu tempo porque são adultos e não podem ser manietados pela autoridade repressora; e também porque alguns dos professores são macacos velhos cínicos que acham que todos os alunos são irremediavelmente vagabundos e qualquer compromisso em educá-los e redimi-los seria pura perda de tempo.Em terceiro lugar, e talvez este seja um pecado de lesa-majestade, porque a matéria versa sobre direito privado e as únicas matérias relevantes em uma faculdade pública são as de direito público, isto é para falar em um português claro, aquilo que é pedido em concursos.

           Aqui chego no ponto central da minha “fala”. No nosso Brasil do século XXI a tarefa da faculdade de direito de uma universidade pública é ser um trampolim para um cargo público, seja no Judiciário, no Legislativo ou no Executivo. Uma faculdade pública não é um lugar que presta serviços públicos à população, onde há uma reflexão sobre o estado das coisas no país feito por uma elite pensante que formula estratégias para o futuro da nação. Pode até haver tais iniciativas entre os professores, para justificarem seus salários de servidores do povo, mas na prática discente o ensino gratuito é um privilégio a ser usufruído até as últimas consequências. Os alunos fogem de matérias que formam mentes e correm atrás daquelas que treinam para provas, isto é que passam conteúdos de exames.

Dou um exemplo. Neste semestre estou cursando Instituições Judiciárias, que se propõe a discutir os males que afligem o judiciário brasileiro: excesso de demandas, poderosos interesses que querem aumentar ainda mais a máquina judiciária, falta de canais alternativos de solução de conflitos, por exemplo departamentos jurídicos bem estruturados nas empresas e arbitragem mais acessível, o papel atual do CNJ, a mania de mudar as leis a todo instante. Em suma, questões prementes que permitiriam aos jovens ter uma visão geral do que é o direito na prática no Brasil, como ele se manifesta de acordo com nossa cultura e espírito tropicais. No primeiro dia de aula, o professor, esperançoso, lançou-nos um desafio: “cabe a vocês mudarem este estado de coisas”. Uma colega minha, aliás muito boa aluna, ao final da palestra, comentou irritada: “essa matéria é inútil para concurso, vou me matricular em Contratos Administrativos”.

         Sob esse aspecto a universidade pública torna-se para o felizardo que consegue lá entrar um meio de adquirir de graça os conhecimentos que são vendidos a peso de ouro em cursinhos jurídicos pelo país afora. Isso lhe dá uma vantagem muito grande. Mesmo que trabalhe durante o dia, poderá economizar dinheiro para ao final da graduação ter aulas particulares de reforço além daquilo de que já gozou a custo zero. Assim herdam-se as capitanias hereditárias, isto é, os empregos bem remunerados da Administração Pública, a maioria dos quais é ocupada por egressos de universidades públicas. Temos então um círculo vicioso ou virtuoso em que o privilégio cria mais privilégio e o tipo de serviço prestado à população em termos de justiça efetiva fica um sonho cada vez mais distante. Afinal, o que esperar de juízes, promotores e afins que entram na carreira sem terem tido na maior parte das vezes real experiência de vida, além de estudos preparatórios nos seus recantos de conforto? Só estrelismo e arrogância, como vemos tanto por aí.

           Bem, já perdi muito tempo com esse meu artigo de conteúdo irrelevante. Preciso voltar para a corrida maluca, mesmo porque tenho que fazer um esforço redobrado para competir com os jovens membros de nossa juventude dourada: meu hardware cerebral de velhinha é mais cheio e portanto tenho menos capacidade de decorar letra de lei, o que é pedido em concursos; trabalho o dia todo em empresa privada, que não me oferece licença prêmio, horário de estudante ou faltas abonadas como meus colegas oficiais e escreventes de justiça (que formam a grande maioria do corpo estudantil); e confesso ter uma ojeriza a ficar ouvindo as histórias da carochinha a respeito de direitos fundamentais, de princípios constitucionais e tal que muitas vezes no Brasil são apenas beletrismo sem sustância. Quem sabe eu vencendo todos esses obstáculos vocês leitores do Montblatt ainda não ouvirão falar de mim como egrégia servidora do Estado? Aguardem-me!

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