Leitores do Montblatt, lanço-lhes uma pergunta à queima-roupa e espero que me respondam com sinceridade: alguma vez em sua vida já foram submetidos a uma chantagem emocional? Digo logo a vocês que eu fui, desde a mais tenra infância. Mas uma experiência que me marcou e me fez refletir muito sobre a luta de classes velada que existe na sociedade foi uma amizade que eu tive com uma colega de faculdade, cujo nome não interessa divulgar. Ficamos amigas logo no primeiro ano e viajamos muitas vezes juntas, nos divertimos e vivemos bons momentos. Mas haviauma tensão no nosso relacionamento que era muito sutil e da qual eu só fui me dando conta ao longo dos anos. Nossa origem social era muito diferente: ela era filha de mãe solteira e não tinha nem o nome do pai nacertidão de nascimento, morava na periferia de São Paulo e com seus próprios esforços e ajudada por sua inteligência havia entrado na universidade pública. Eu era totalmente diferente: cresci em uma família de classe média, estudei em escola particular e minha entrada na universidade pública foi uma consequência natural das oportunidades a que tive acesso e da minha seriedade nos estudos.
A princípio considerávamo-nos muito íntimas e em pé de igualdade, mas na verdade quando penso retrospectivamente percebo queela sempre estava acima de mim, tanto porque ela se colocava lá quanto porque eu a mantinhana posição. No pedestal estava a self-made woman que em razão das dificuldades que enfrentou, dos obstáculos que teve que superar era naturalmente mais virtuosa do que eu, uma menininha mimada que nunca teve que traballhar de recepcionista e estudar à noite. De fato, como eu poderia negar isso? Como poderia negar que as coisas que me preocupavam, como por exemplo o objetivo moral de ser professora, eram muito aristocráticas e platônicas em face das questões práticas que minha amiga tinha que enfrentar, tais como como pagar as contas, onde morar etc? Isso me fazia me sentir muito culpada quando eu vinha com minhas crises existenciais e lembro da mal disfarçada condescendência com que ela me escutava e me dava conselhos. Sim, porque como pobre e sofredora virtuosa era ela sempre quemme dava sua opinião sábia, era ela sempre que ralhava ligeiramente comigo por coisas que eu dizia e que feriam suas suscetibilidades de pessoa que não se sente bem aceita em um novo meio social diferente do seu de origem. Eu ficava sempre mortificada por ela ter entendido que eu estava gozando dela ou estava sendo cruel e preconceituosa porque no fundo eu não passava de uma burguesa mimada.
Com o passar do tempo, fui amadurecendo e tornando-me mais assertiva ecomecei a perceber que a indignação moral dela com minhas “infantilidades” tinha muito de má fée rancor. A gota d’água foi quando um diacompartilhei com minha cara metade a opinião de que o Departamento de Recursos Humanos das empresas era uma grande picaretagem, porque o que contava mesmo não eram as regras de boa governança corporativa ou o Manual de Conduta Ética, masas relações de poder. Ela me replicou, dizendo que estava muito magoada, afinal ela trabalhava com RH. Foi a minha vez então de pela primeira vez me rebelar e não pedir desculpas. Afinal, eu tinha feito a ressalva que estava discutindo ideias, não estava falando dela pessoalmente. Sabia que ela era uma pessoa honesta e se eu abordava o assunto é porque a achava de posse da experiência e da inteligência suficientes para que tivéssemos uma boa discussão.
O fato é que a partir daí eu fui me afastando desta paladina dos pobres e oprimidos e fui me assumindo como eu sou, uma pessoa que nunca foi pobre, pelo menos até agora, mas que não se considera menos boa cidadã do que os que tiveram menos oportunidades que eu. Parei de me sentir culpada por coisas que eu não fiz: afinal não fui eu quem se envolveu com o homem errado e ficou grávida de maneira indesejada, não fui eu quem tornou a vida das mães solteiras no Brasil difícil por causa da falta de assistência do Estado. É verdade que não dôo o dinheiro que ganho em virtude das melhores oportunidades que tive como forma de compensação pelas injustiças que não sofri, mas ao menos nunca na vida eu soneguei impostos, apesar de pela minha profissão ter a oportunidade de fazê-lo.
Este grande intróito leitores, a respeito da minha disputa com uma ex amiga, é para tratar de um assunto que já foi abordado aqui neste Montblatt, mas sobre o qual gostaria de apresentar minha opinião, que é a questão das cotas nas universidades públicas. Pelo modo como contei minha história de vida fica claro de que lado fico nesta polêmica. Sou terminantemente contra estabelecer esse segundo critério paralelo de entrada no ensino superior. Acho isso pura chantagem emocional, mais uma que politicamente se faz com a classe média brasileira tradicional, isto é , aquela que surgiu no bojo do grande crescimento econômico que experimentamos na segunda metade do século XX até meados dos anos 70.
Por favor, não me entendam mal. Não acho a classe média imune a críticas, pelo contrário. Realmente, somos bem mimados em termos de educação superior e pior, damos muito menos do que poderíamos dar em troca desse privilégio. Há muita vagabundagem nas universidades públicas brasileiras, e para muitos alunos estar lá durantequatro, cinco ou seis anos é apenas um álibi para mostrar aos pais enquanto estão no hotel (coincidentemente ontem à noite estava descendo a Rua Riachuelo para voltar para casa depois da aula quando vi saindo de um hotel um casal de namorados da minha classe) no bar ou na balada. Sou uma típica aluna nerd, e me espanta sempre como tudo é nivelado por baixo, como os professores, com honrosas exceções, se abstém de exigir a excelência porque dá menos trabalho e se acostumam com a mediocridade.
A solução no entanto, não está em punir os burgueses privilegiados tirando-lhes pelo sistema de cotas uma vaga que eles conquistariam pelo seu mérito acadêmico, mas uma vez eles tendo chegado lá, lembrar-lhes constantemente que estão usufruindo um privilégio e que devem fazer por merecê-lo. Na minha opinião, isso implicaria tornar as condições de aprovação nas disciplinas muito mais rígidas do que são na atualidade, de modo que se não preenchidas houvessem punições severas , como a perda da vaga. A vaga perdida por um burguês mimado mas preguiçoso seria oferecida a alunos de universidades privadas que prestassem um exame de admissão. Minha modesta proposta é portanto fazer das universidades públicas que congregam os melhores alunos os centros de excelência que vão formar os melhores profissionais. Não nego o elitismo da minha visão, mas acredito sinceramente que o Brasil como um todo se beneficiaria se nossas instituições de ensino superior públicas moldassem melhor o material humano que lhe cai nas mãos. Infelizmente, o que muitas vezes acontece é queelas acabam despejando profissionais medíocres no mercado.
Os defensores dessa democratização do ensino superior alegam que as pesquisas indicam que o desempenho dos alunos que entraram por meio de cotas é equivalente ao dos outros alunos. Só acredito nesses resultados se me provarem que os critérios de avaliação adotados antes são os mesmos deagora, do contrário esses resultados equivalentes são mera estratégia do professor que ao ver seu público mudar vai simplesmente nivelar por baixo parater menos trabalho. Podem chamar-me de metida, mas estudei um ano em uma universidade particular, e nós tínhamos aula de como estudar porque o público não sabia o que era ler e resumir o texto para absorver as ideais principais.
A ideia de cotas é uma grande chantagem emocional que faz a alegria de políticos de todos os quadrantes que vendem a maravilha da democratização da universidade,de burgueses preguiçosos que ao apoiarem a cota poderão fazer média, dirimir sua culpa atávica pelas injustiças seculares do país e principalmente se livrar daobrigação de apresentar resultados mais satisfatórios de seus estudos,e claro dos que entrarem na universidade por este atalho. Quem perde é o país, que precisa de pessoas bem formadas e cônscias dos seus deveres de elite em relação ao nosso desenvolvimento.