A aguardada continuação do filme Tropa de Elite estreou há duas semanas e tem feito bastante sucesso de público. Os críticos no geral acham que houve uma evolução no pensamento do Capitão Nascimento, que começa a ver que para acabar com o tráfico não basta somente matar os “vagabundos”, pois os que comandam o tráfico estão alhures, além das favelas do Rio de Janeiro. Ao longo do filme ele vai mostrando o papel das milícias que teria tomado o lugar dos traficantes no controle dos moradores, dos políticos que se valem desse poder das milícias para conseguir votos na favela, dos jornalistas sensacionalistas que se elegem com o discurso do prenda e arrebenta.
Sem dúvida sob um certo ponto de vista a visão do Capitão Nascimento se torna mais complexa, mais nuançada, no mínimo porque o rol de “vagabundos” não é composto só da ponta do iceberg, representada pelo chefes de tráfico na favela que estão na linha de frente do tiro. Mesmo assim, uma coisa que me incomodou foi ele fazer insistentemente menção a um tal de “sistema” que impede que as coisas mudem para melhor, um sistema tão poderoso que quando um de seus membros é eliminado, ele o repõe de pronto e por isso demorará anos até que o problema se resolva. Aqui cabe a pergunta: que raios de sistema é esse? A cena final do filme é um vôo sobre Brasília, onde estão os políticos que aparentemente comandam o sistema de manipulação dos pobres que os mantém na miséria e os levam ao tráfico. Será que a moral do filme é que o sistema corrupto é o culpado?
A questão de culpar o sistema é que acabamos dando vida a um ser inanimado e deixamos de ver que há pessoas que tomam certas decisões que têm enorme repercussão. Se fôssemos analisar o sistema do tráfico, veríamos que ele se alimenta não só da indigência material e cultural do nosso povo, mas de decisões das grandes potências que escolhem não fazer nada para coibir os paraísos fiscais, ou escolhem até estimular-lhes a criação, paraísos estes que permitem a lavagem do dinheiro sujo do tráfico; veríamos que a lavagem de dinheiro é uma bem azeitada indústria que movimenta bilhões de dólares em todo o mundo, porque criou-se um consenso na sociedade, por certo estimulado por aqueles que dele se beneficiam, que o “sistema financeiro” é por demais importante para a economia e deve ter rédea solta para fomentar o crescimento; veríamos que há grandes empresas de armamentos que ganham muito dinheiro vendendo seus produtos em todos os rincões do mundo sem que os governos que as promovem se importem com o fato de que tais armas serão usadas nas guerras dos traficantes.
Muitas vezes nos sentimos orgulhosos do nosso realismo quando dizemos, tal como o Capitão Nascimento: O sistema é muito poderoso, é muito difícil ser combatido”. Achamos com isso que estamos entendendo as engrenagens do poder. Nada mais falso, pois ao não darmos nome aos bois, estamos simplesmente deixando de responsabilizar pessoas que fazem determinadas coisas que trarão conseqüências à sociedade. Quero dar dois exemplos tirado desse nosso período de campanha.
A celeuma em torno do aborto é um deles: os dois candidatos à presidência, Dilma e Serra, tergiversaram e nós, que escolheremos um ou outro, diremos em sua defesa: “O sistema exige concessões, para que se possa fazer alguma coisa. Faz parte do jogo tentar conquistar o voto dos evangélicos.” Ora, será que nossa melhor reação deve ser o cinismo informado? Ou será que deveríamos nos questionar o porquê de os candidatos ficarem debatendo questões não pertinentes e deixarem de falar do que realmente interessa, que é o rumo que o Brasil deve tomar neste século XXI, em que haverá profundas transformações no ordenamento econômico mundial?
O leitor do Montblatt Rui Daher em sua crítica ao editor, reconhece que o PT aderiu ao fisiologismo, que houve o Mensalão, que o setor financeiro dá dinheiro à candidata Dilma mas parece relevar tudo isso, implicitamente aderindo à tese de que se o Lula fez inevitáveis concessões ao sistema, isso tudo é compensado pelo fato de ter tirado milhões da miséria, ter aumentado o emprego e a renda. Novamente aqui me parece que se abandonássemos essa idéia de sistema e enfocássemos as pessoas veríamos que o Lula e o PT têm um projeto de permanecer no poder, assim como o PSDB de Serra tiveram quando compraram no Congresso a reeleição e mandato de quatro anos. Para isso batalharam pelo voto cativo dos beneficiados do Bolsa Família e pelo beneplácito da elite financeira que se locupleta com nossa dívida pública monstruosa, dívida esta cada vez mais alta, descontrolada, que nos deixa em posição vulnerável ante qualquer crise financeira, crise esta que se vier levará de roldão todo nosso modesto crescimento econômico, geração de emprego e renda.
Talvez há os que achem que responsabilizar as pessoas pelos seus atos seja algo de liberais de direita que querem mandar os pobres para a cadeia. Talvez seja mais confortável pensar em grandes sistemas impessoais, sobre os quais não temos controle, e assim não precisamos assumir responsabilidade por nossas escolhas. Eu ainda quero crer que a única saída para nós seres humanos é acreditar que podemos tomar decisões de acordo com o que nós acreditamos ser certo e ser errado. Isso evita que mistifiquemos as pessoas ou as amesquinhemos, pois elas não estão contra ou a favor do sistema, mas simplesmente tomam decisões num determinado contexto. E ao tomar decisões temos sempre uma prioridade em mente, relegando o não prioritário. O debate político no Brasil seria muito mais profícuo se parássemos de rotular pessoas como de direita ou de esquerda, querendo com isso dar-nos uma pretensa superioridade intelectual em relação aos que não compartilham de nosso preconceito e começássemos com duas perguntas básicas: por que tomar tal medida? A quem ela beneficia? A quem ela prejudica? Oxalá um dia cheguemos a esse estágio de maturidade, para além do Fla x Flu que impera em nossa terra.