Não sabemos ainda o que acontecerá no Egito, pode ser que Hosni Mubarak seja defenestrado para ser substituído por outro general da mesma qualidade, ou falta de qualidade, a depender do ponto de vista, de maneira a satisfazer a sanha do povo nas ruas. Pode ser que os egípcios consigam exercer uma pressão suficiente para que o líder da oposição, Mohamed El Baradei, candidato preferido da classe média, seja alçado ao poder. Uma terceira possibilidade é ocorrer a ascensão do fundamentalismo islâmico, na forma da Fraternidade Muçulmana, responsável pelo assassinato de Anwar Sadat.
Essa organização conta com cerca de 2 milhões de adeptos dentre os 80 milhões de egípcios. Pode parecer pouco, inclusive porque tem sido até agora reprimida por Mubarak. No entanto, a posição do ditador acaba dando credibilidade aos inimigos do regime secular atualmente em vigor no Egito. Amigo de Israel e dos Estados Unidos, mais um dentre tantos árabes que se venderam, não só dificultando o avanço da causa palestina, por ajudar no bloqueio a Gaza, como tornando o país dependente da ajuda militar e financeira dos EUA, Mubarak representa aos olhos dos radicais muçulmanos o mal advindo da aliança com o Ocidente (o Egito tem um tratado de paz com Israel que já dura 30 anos). Ao tempo de Gamal Abdel Nasser, o Egito tentou trilhar um caminho próprio de desenvolvimento. A partir da ascensão de Mubarak ao poder em 1981, as elites egípcias se decidiram pelo caminho mais fácil, locupletando-se, e o país hoje está mergulhado na miséria e é importador de comida, principalmente do seu financiador, os EUA.
A injustiça da situação enfrentada pelos egípcios é demonstrada pelo grau de violência que temos visto nos protestos. O povo está indo às ruas contra a corrupção endêmica, contra os privilégios dados aos ricos, contra a falta de emprego, contra a opressão dos muçulmanos perpetrada pelos americanos no Afeganistão, Iraque, Paquistão e Palestina. O acinte a que se chegou, com o beneplácito dos EUA, que tem no Egito de Mubarak um aliado para concretizar sua política no Oriente Médio, só faz desmoralizar os valores ocidentais expressos e aparentemente defendidos pelo Exército americano e seus diplomatas, e por oposição, a dar credibilidade à visão islâmica do mundo, feita de sharia, de justiça sumária e cruel, de obediência literal aos mandamentos do Corão, de colocação das mulheres no seu devido lugar de agentes de reprodução.
Nesse sentido talvez estejamos chegando a um ponto de inflexão, em que o véu da hipocrisia ocidental está sendo desvendado e rasgado como nunca dantes, a ponto de se tornar pano roto. No período da Guerra Fria, os Estados Unidos arvoraram-se os defensores dos valores da liberdade e da democracia, contra o controle da vida do indivíduo pelo Estado Comunista. Em nome desses valores, os Estados Unidos apoiaram todo e qualquer regime que se colocasse contra o comunismo, desde ditadores sanguinários como Augusto Pinochet, cleptomaníacos como Mobutu Sese Seko, canibais como Charles Taylor. Mas ao final eles justificaram em 1989 dizendo que a Guerra Fria tinha valido a pena já que o inimigo não só foi derrotado de maneira acachapante com inclusive acabou adotando os valores ocidentais. Quem não se lembra na década de 1990, da corrida desenfreada dos russos rumo ao capitalismo, vendendo estatais a toque de caixa e preço de banana? Aparentemente estava inaugurada a Pax Americana, que garantiria estabilidade ao mundo, por proporcionar uma ordem justa, global, calcada no livre comércio, na democracia parlamentarista. O que temos 20 anos depois?
Ora, percebe-se claramente que a ofensiva imperialista dos EUA nunca teve como objetivo inaugurar uma ordem que fosse includente, fundada nos direitos humanos, na igualdade de oportunidades para todos, como proclamam os defensores do capitalismo. Seu único objetivo era que fosse lucrativa, não para os americanos como um todo, mas para os grupos que se beneficiam da globalização: a elite financeira que faz a mágica de criar dinheiro a partir de dinheiro, sem nenhuma correspondência com a realidade econômica, socializando os prejuízos quando o truque não dá certo e privatizando os lucros quando a platéia fica embasbacada; as multinacionais que tornaram suas operações globais, transferindo-as para países com custo de mão de obra mais baixo na Ásia e criando nos EUA uma classe média sem nenhuma perspectiva, de quem lhes foi tirado o chão das fábricas de automóveis, aço, e outras indústrias tradicionais; e o complexo militar que se beneficia da caça às bruxas agora em vigor, conseguindo alocar seus mercenários nas guerras sem fim ao terror.
O resultado desses objetivos puramente mercantilistas de uma elite global, que se irradiou dos EUA para o mundo, não contribuiu em nada para consolidar a democracia, a pluralidade, o liberalismo, a pujança. Na América Latina nos impuseram o Consenso de Washington goela abaixo, e a única coisa que conseguimos foi nos reinventarmos como exportadores de commodities, como temos feito secularmente, e darmos asas a populistas como Hugo Chávez e Evo Morales acumularem poder às custas de uma retórica anti-americana e anti-liberal. Na Europa, os tecnocratas globais criaram a União Européia para livrar o continente de uma vez por todas do espectro do comunismo e das guerras, juntando no mesmo barco economias díspares, levando os países mais frágeis da Europa Oriental e Meridional à bancarrota. Os Estados Unidos atualmente estão, por meio de sua política monetária destinada a livrá-los da recessão, valorizando artificialmente as moedas dos países em desenvolvimento, com conseqüências danosas para a estabilidade financeira deles. O Oriente Médio continua viciado ao petróleo, vício este alimentado pelos grandes consumidores, na maioria países ocidentais, tendo à frente os EUA. Podemos citar talvez a Índia e a China como países que se beneficiaram da globalização, mas em termos especiais. A China impõe controles sobre o acesso a empregos por meio do sistema de hukou, o passaporte interno, e a Índia criou uma casta de engenheiros, operadores de telemarketing, médicos e advogados conectados ao mundo global, mas deixou de lado a maioria daqueles que não tem o inglês perfeito para se encaixar. De qualquer forma, a trajetória desses países, culturas milenares que estavam aí muito antes do Ocidente ascender, mostra que para se dar bem na globalização é preciso cultivar uma atitude de desconfiança em relação à conversa maviosa dos ocidentais, a não querer seguir a cartilha que eles impõem para tirar boas notas. A China é um mau aluno de acordo com o cânone em voga: não respeita direitos humanos, não é democrática e é protecionista, só querendo obter vantagens do sistema global e evitando-lhe as armadilhas. Resultado: se não é amada, ao menos é respeitada como global player.
Desse modo, as conseqüências pífias, senão desastrosas da Pax Americana, que semearam caos e injustiça no mundo, têm nos acontecimentos no Egito sua mais recente manifestação. Longe de sinalizar uma tentativa de realização da democracia, da pluralidade, da tolerância, o rastro de pólvora que se espalha no Oriente Médio a partir da Tunísia pode ser a pá de cal em qualquer esperança de uma ordem jurídica internacional fundada nos valores ocidentais. Nem due process of law, nem separação de poderes, nada do que o racionalismo conquistou no Ocidente nos últimos 6 séculos. O que está à espreita é a mais lídima teocracia, tal como já existe no Irã. E ironicamente o Ocidente, com sua cobiça desenfreada, seu cinismo e sua indolência movida a consumo, tem uma boa dose de culpa por essa virada espetacular.