No domingo passado assisti por um acaso na TV ao filme de Sofia Copolla sobre Maria Antonieta, a rainha da França guilhotinada. Digo por um acaso porque estava comendo minha sobremesa quando peguei o filme em algum canal de cinema. Como eu gosto de filmes sobre história eu parei de zapear e nele me fixei.
Para fazer uma história que se passou há mais de duzentos anos ter algum significado para as plateias do mundo presente, a diretora se valeu do expediente de retratar Maria Antonieta como uma adolescente incompreendida, cujas reais necessidades nunca eram satisfeitas por adultos que só cuidavam dos seus próprios interesses. Maria Antonieta chega à corte da França para casar-se com o herdeiro do trono, o futuro Luís XVI e sua tarefa primeira e única é parir filhos homens que deem continuidade à dinastia dos Bourbon. Desse seu papel de égua parideira ela é lembrada a todo tempo, pelo embaixador da Áustria, que se preocupa com a possibilidade de o casamento ser anulado se não houver nascimento de um filho; por sua mãe, a imperatriz Maria Teresa, que ralhava com a filha por não se mostrar suficientemente agradável e amorosa para suscitar a cópula real; para não falar dos cortesãos que a acusavam, veladamente é claro, de frígida, de estéril. Coitadinha, mal sabem eles que o marido dela tem fimose e por isso foge do sexo como o diabo foge da cruz, preferindo comer e fazer móveis (a verdadeira vocação de Luís XVI era ser marceneiro, não homem de Estado)!
No meio desse fogo cruzado, a pobre adolescente se refugia na diversão, quer comprando compulsivamente, quer indo a bailes de máscara em que dançava e bebia na companhia de suas damas de honra. É em uma dessas baladas que Maria Antonieta conhece Axel Von Fersen, o homem de sua vida que nunca a abandonaria, que a visitou quando estava presa no Palais des Tuileries e tentou ajudar a família real na infrutífera fuga de Varennes. Fersen ficou tão associado à monarquia por sua ligação com a infeliz rainha, que aos 54 anos de idade acabou sendo linchado na revolução liberal que houve em seu país natal, a Suécia.
Temos então no filme uma pobre menina rica, que apesar de todo o luxo e
toda a pompa de Versailles se aborrecia tremendamente. Sim, porque Versailles para ela é uma prisão, a prisão onde Luis XIV colocou os nobres para mais bem controlá-los, estabelecendo regras rígidas de etiqueta para que pudesse haver um convívio mais ou menos harmonioso. Um lugar onde o rei sol tornou a monarquia uma vez por todas livre da turba parisiense, que tantas vezes havia se mostrado infiel e imprevisível.
Após sete anos de casamento e resolvido o problema da fimose, Maria Antonieta finalmente dá à luz uma filha, a que se seguem outros três. Como presente por ter cumprido sua função eqüina, recebe de presente do marido o Petit Trianon, onde ela podia estar com seus amigos, longe daquela corte maledicente. Lá ela podia se lembrar de sua Áustria natal, da sua infância querida em que os saraus familiares eram animados por apresentações ao vivo de um músico prodígio de nome Mozart, podia procurar abelhas com a filha, podia estar mais ou menos a sós para um namoro inocente com seu amado conde sueco. Enquanto vivia em sua bolha, ela nunca poderia imaginar que a Revolução Francesa estava a ponto de eclodir.
Maria Antonieta e seu marido se tornaram bodes expiatórios e muito se falou sobre a falta de habilidade política do rei. Se Luís XVI tivesse sido mais flexível, se ele tivesse entendido ao menos parcialmente que era preciso mudar para continuar tudo como dantes, como dizia o Príncipe de Lampedusa, a história teria sido outra. Aliás, Napoleão Bonaparte era fascinado pelo episódio da fuga de Varennes que no seu entender foi um divisor de águas. O rei, que até então ainda mantinha o respeito do povo, a partir desse episódio, em que ele tentou se juntar aos descontentes na Áustria, passou a ser visto como um traidor da pátria, perdendo sua legitimidade e selando o fim da monarquia.
Está aí o aspecto fascinante da história. Nós que olhamos o passado e sabemos qual foi o resultado, sempre nos arvoramos críticos das atitudes dos que foram seus protagonistas. Dizemos que Luís XVI poderia ter se transformado em um monarca constitucional, pegando carona no nacionalismo que começava então a florescer no século XVIII. Ao invés disso, preferiu o caminho reacionário de buscar ajuda dos aristocratas descontentes com as mudanças.
O problema é que nenhum ponto de vista sobre a história pode ser testado, no sentido científico do termo, porque não é possível repetir os
acontecimentos. E se Maria Antonieta não tivesse tido um amante corajoso que moveu céus e terras para ajudá-la e a sua família na fuga? E se Maria Antonieta tivesse sido mais inteligente ao invés de uma espécie de Lady Di do século XVIII? Talvez tivesse aconselhado melhor seu marido e nenhum deles teria sido guilhotinado.
Nunca saberemos a causa necessária, suficiente e imediata da Revolução Francesa, como não sabemos de verdade a causa de nenhum acontecimento histórico. O que os historiadores fazem é eleger um ponto de vista, de acordo com seu sistema de valores e a partir dele escrever uma versão coerente dos acontecimentos, versão esta que nada tem a ver com o que os que viveram a história realmente experimentaram. Porque no calor dos acontecimentos, há vários caminhos possíveis, e nenhum deles é tão cristalino como o é para aquele que vê a história depois do resultado ter frutificado.
Afinal, como desconfiar que além do Petit Trianon pudesse haver um mar
de rancores, injustiças? Como acusar os aristocratas de serem alienados se
tudo havia sido sempre assim há centenas de anos? Se os fonciers viviam do seu direito natural à propriedade da terra, que era considerada à época a única fonte de subsistência? Sob essa ótica, os atuais poderosos também podem estar na mesma situação do grupo social do qual Maria Antonieta e Luís XVI se tornaram o símbolo execrável.
Por acaso não temos uma elite global sem nenhum compromisso com
nenhum país a não ser com seus próprios interesses? Por acaso não é o mesmo ethos dos aristocratas do século XVIII, cujo principal vínculo era com eles próprios mais do que com o povo que lhes sustentava? Uma multinacional que terceiriza suas operações procurando locais com menores custos não age da mesma forma que os fujões de Varennes, que queriam voltar a viver em paz, longe da turba?
Por acaso não temos grupos econômicos que vivem de renda, que não produzem nada e cujo lucro advém do mero fato de possuírem o bem mais precioso, que em nossa sociedade é o dinheiro? Qual a diferença entre o senhor feudal que explorava os servos e lhes cobrava a talha e a corvéia pelo direito de usar a terra, e os banqueiros que nos cobram juros escorchantes no cheque especial, que fazem empréstimos consignados a velhinhos incautos e nunca tomam nenhum prejuízo porque são considerados intocáveis?
Por acaso não há a mesma aura de sacralidade em torno do sistema financeiro atualmente que antes existia em relação aos proprietários de terra, a quem se perdoavam todos os excessos, todos os desmandos? Dar ajuda financeira a bancos que agem irresponsavelmente é a mesma coisa que dar uma sinecura a um nobre devasso que é mandado alhures por um rei benevolente que lhe perdoa o fato de ter deflorado e abusado da camponesa que vivia em sua terra e ter matado o marido que foi reclamar. Quantas vidas foram destruídas pela última crise financeira que transformou em pó fundos de pensão acumulados durante anos por aqueles que pretendiam ter uma aposentadoria tranquila?
E por fim, quem disse que nosso Estado não é tão endividado como era no limiar da Revolução Francesa, tão refém de grupos de interesse que se locupletavam do déficit das contas públicas como hoje acontece? Quem pode negar que haja um Terceiro Estado, formado pelos trabalhadores, pelos aposentados, que é o primeiro a pagar e o último a receber, e um grupo de elite formado pelos primeiros a receber e os últimos a pagar?
Podemos estar vivendo hoje tempos interessantes, como diriam os chineses, tanto quanto aqueles de Maria Antonieta, em meio a seus sapatos, suas taças de vinho suas peças de tafetá, seu apetite sexual insatisfeito. Podemos estar olhando para nosso próprio umbigo, alheios ao turbilhão que corre lá fora e vermos de repente ele chegar e sermos levados pela correnteza. Um dia os historiadores do futuro poderão nos acusar de alienados e estúpidos, quando talvez fôssemos apenas inocentes, reclusos nos nossos pequeninos
refúgios.