A Noruega é um país que tem muito do que se orgulhar. É o segundo maior exportador de gás do mundo e o nono de petróleo. Prevendo o fim da bonança proporcionada por seus recursos naturais, criou um fundo soberano como provisão para dias de vacas magras que em 2010 já acumulava a astronômica cifra de 500 bilhões de dólares, nada mal para uma população que não chega a cinco milhões de habitantes. Tem uma taxa de desemprego baixa, de 3,6%, alta renda per capita, de 54.600 dólares (a sétima maior do mundo).
Além de suas proezas econômicas, exerce um papel de bom mocismo no cenário internacional. É o Comitê Nobel Norueguês, nomeado pelos membros do Parlamento Norueguês, quem escolhe a cada ano o laureado com o Prêmio Nobel da Paz, entregue em sua capital, Oslo. A escolha dos premiados revela a preocupação dos noruegueses de contemplarem as diferentes culturas e sociedades.
Se figuras do centro do capitalismo estão na lista de ganhadores, como Henry Kissinger, Barack Obama, Woodrow Wilson, Theodore Roosevelt, Lech Walesa, Mikhail Gorbachev, sempre houve espaço para pessoas fora do eixo Estados Unidos-Europa: entre outros, Desmond Tutu, sul-africano agraciado em 1984 por sua luta contra o apartheid, Rigoberta Menchú, guatemalteca reconhecida em 1992 por seus esforços em prol da justiça social e da conciliação étnico cultural com base no respeito aos direitos das populações indígenas, e Liu Xiaobo, chinês agraciado no ano passado por defender os direitos humanos de maneira não violenta. E não devemos esquecer os esforços de mediação realizados pela Noruega que resultaram na assinatura em 1993 dos Acordos de Oslo entre israelenses e palestinos que criou a Autoridade Nacional Palestina, embrião do futuro Estado Palestino, que até agora ainda não se concretizou.
Mais correção política de um país, impossível: tolerância, paz, promoção da igualdade entre os sexos e da diversidade cultural, toda a cartilha do que é moralmente válido nestes tempos globalizados é seguida pela Noruega em sua atuação internacional. E no entanto, um país tão radioso, embora longe de ser radiante, porque mesmo no verão o sol custa a aparecer naquelas plagas, revelou ao mundo esconder à sombra de algum fjord o ovo de uma serpente. Uma serpente que quebrou seu casulo, mostrou sua presa e destilou seu veneno, matando 67 pessoas (número sujeito a correções) em Oslo no sábado dia 22 de julho.
Essa serpente atende pelo nome de Anders Behring Breivik, 32 anos, filho de pais de classe média separados quando ele tinha um ano, amante do videogame World of Warcraft. Em um site na internet ele explica o porquê de seus dois ataques, a explosão de uma bomba no centro administrativo da capital e o fuzilamento de jovens noruegueses do Partido Trabalhista, reunidos em um acampamento de verão. Auto intitulando-se cavaleiro de uma ressuscitada Ordem dos Templários, os cavaleiros medievais que foram a ponta de lança dos cruzados no Oriente Médio para a retomada da Terra Santa, o objetivo de Anders com suas ações extraordinárias era o de despertar a consciência dos europeus brancos e cristãos sobre a necessidade de combater os muçulmanos que em 2050, diante das atuais tendências demográficas, tornar-se-ão maioria na Europa.
Não só despertar a consciência como conclamá-los a participar da luta, mostrando-lhes o caminho. Anders descreve detalhadamente seus preparativos e vocifera contra o alvo de sua ira. De um lado, o governo da Noruega, que aceita imigrantes muçulmanos de maneira indiscriminada (nota minha: não-europeus representam atualmente 2% da população), e os membros da esquerda, que são a quinta coluna do islamismo porque rezam pela cartilha do multiculturalismo, do relativismo cultural, da igualdade entre os sexos, da emasculação dos homens, o que para Anders levará inevitavelmente ao Armageddon, isto é, à completa aniquilação da civilização europeia, fundada no cristianismo.
Sem dúvida estamos diante de um psicopata, um narcisista extremo que agiu sozinho e que pagará barato por suas monstruosidades, pois depois de 21 anos de prisão terá direito a novo julgamento. Mas será que ele não reflete um mal-estar existencial compartilhado por tantas pessoas neste século XXI? Um mal-estar diante da transformação do dinheiro no denominador comum que apaga diferenças culturais e morais, em prol de um padrão global de comportamento girando em torno do consumo? Um mal-estar diante do avanço inexorável do capitalismo financeiro mundial que se antes fazia suas vítimas só na periferia do sistema (África, América Latina e Ásia) agora provoca estragos nos outrora centros de riqueza (Europa e América do Norte)? Um mal-estar diante de um sistema econômico que provoca uma corrida suicida cujo objetivo é tornar a vida dos trabalhadores cada vez mais regrada e árdua para que os financistas e as empresas multinacionais possam viver à tripa forra? Afinal, se os muçulmanos hoje são os bodes expiatórios da vez, é porque os europeus se vêem ameaçados em seu modo de vida confortável, em seus empregos por uma competição que se tornou global e que os coloca frente a frente com chineses, indianos, vietnamitas que são capazes de trabalhar de maneira razoável para receber uma ninharia. E se eles se voltam contra os muçulmanos e não contra os asiáticos que são quem realmente devem temer, é porque os muçulmanos estão lá no coração da Europa com suas burkas, com suas rezas, com suas peles escuras, suas barbas, lado a lado com os cristãos brancos.
Por outro lado, qualquer explicação econômica, cultural ou política é inútil em um caso tão absurdo como este. Talvez a simples razão que tenha levado Anders Behring Breivik à fúria assassina seja simplesmente que ele estava entediado com sua vida confortável, que o video game já não era suficiente para satisfazer as demandas de sua testosterona e resolveu dar vazão a Tânatos, a pulsão de morte que cada um tem dentro de si, de acordo com o velho Freud. Simples assim. Nesse caso ignorem o que eu disse e se satisfaçam com o simples bordão: “De perto ninguém é normal.”