A proeminência do Poder Judiciário na vida nacional veio para ficar. Os motivos são vários. Como formamos consumidores e não cidadãos conscientes de suas responsabilidades e direitos, as eleições se transformaram em uma escolha cosmética entre o vermelho e o azul, entre o sorriso mais cristalino e o sorriso mais amarelo com candidatos pasteurizados, como bem apontou Roberto Gomes no penúltimo Montblatt. Aqui na minha terra por pouco não elegemos Netinho, pagodeiro e chapuletador de mulheres, mas exercitamos nosso direito democrático de eleger Tiririca, iletrado completo, como protesto. Os votos nulos para senador foram maiores do que os votos para a Marta Suplicy e para o pagodeiro. Maluf, cleptomaníaco psicopata, teve mais de 400 mil votos. No Paraná Ratinho Júnior foi o mais votado deputado.
Tal atitude de deboche e descaso é típica de uma geração criada assistindo ao CQC e programas congêneres, que são considerados por muitos como sátiras contestadoras, quando nada mais fazem do que manter o status quo. Sim, porque ao gozarem de todos os políticos, ao ridicularizarem-nos indiscriminadamente, ao não estabelecerem nuances, esse humorísticos fazem com que todos caiam na mesma vala comum, ocorrendo um nivelamento por baixo. Tanto é que este Congresso será um dos piores de nossa história. Azar o nosso, que não nos responsabilizamos por nossas escolhas e deixamos que os marqueteiros façam nossa cabeça. Afinal quem sustentará o Tiririca por quatro anos em Brasília somos nós, o Duda Mendonça ou qualquer outros desses anjos do mal se locupletarão com nossa burrice e inconseqüência.
Ou seja, o prognóstico para o Legislativo é que ele se torne um poder cada vez mais inútil, incapaz de elaborar as leis de que o país poderá precisar e de fazê-lo de maneira correta. O apagão do Congresso, como um dia a ministra Ellen Gracie afirmou em voto no Supremo, faz com que o Judiciário seja chamado a suprir as lacunas deixadas pela inoperância daqueles que o povo elegeu para tal e a resolver questões que envolvem julgamentos de valor: abortos de anencéfalos, pesquisas com células tronco, ensino religioso, tudo isso deveria ser decidido por nossos congressistas ou pela sociedade por meio de referendo, mas acaba desaguando nas mãos de juízes, que fazem malabarismos argumentativos para provar que suas idéias são lídimos reflexos da Constituição. Será que são? Ou são uma opinião pessoal do juiz vestida de roupagem jurídica e que permite enfiá-la goela abaixo dos cidadãos (ou pseudo cidadãos)?
Na França sempre houve uma profunda desconfiança do Poder Judiciário, tanto que foi lá que surgiu a escola da exegese no século XIX, que estabelecia rígidos padrões de hermenêutica de maneira que o juiz não colocasse as azinhas de fora. Sua tarefa deveria tratar o Código Civil de Napoleão como um texto sagrado que não poderia ser conspurcado, somente interpretado de maneira literal, para garantir a segurança jurídica essencial aos negócios. Os Estados Unidos foram fundados tendo como mito de fundação a Constituição, que garantia a liberdade dos cidadãos face à opressão do Estado.
E no Brasil nossa constituição de 1988 tem qual status? Aqui surge um segundo motivo da proeminência do Judiciário. Em prol da realização dos princípios da “Carta Maior” firmou-se uma doutrina jurídica, copiada de alhures, segundo a qual cabe ao juiz dar asas a sua imaginação para colocá-los em prática. Qualquer ato jurídico só tem validade se estiver em consonância com os direitos fundamentais estabelecidos na nossa “Bíblia republicana”. O contrato deve exercer uma função social, e caso o juiz entender que não está ele pode anular a cláusula abusiva, mesmo que ela tenha sido acordada pelas partes contratantes. O Juiz, em nome do direito à saúde, manda o Executivo distribuir remédios caríssimos contra o câncer que não estão no orçamento, porque algum indivíduo esperto viu que um bom atalho para conseguir o que quer é recorrer ao Judiciário. O impasse sobre Lei da Ficha Limpa é reflexo da luta pelos princípios: de um lado os que defendem a segurança jurídica e acham que ela só deve valer para as próximas eleições, de outro os que acham que a lei permitirá aprimorar a democracia.
Esse viés principiológico dado ao Judiciário, imbuído de missão muito mais ambiciosa do que a mera aplicação da literalidade da lei, terá cada vez mais conseqüências sobre a vida nacional. Assistiremos cada vez mais, inertes, às disputas entre os ministros do Supremo, entre juízes de primeira e segunda instância, cada um se arvorando em defensor da Constituição, e na verdade tomando decisões políticas nas quais o povo brasileiro não dará palpite. Tem graça? É justo termos eleições para elegermos palhaços e os verdadeiros fazedores da política, isto é os ministros do Supremo, serem escolhidos à base de conchavos? Todos nós queremos justiça, mas para que cada um tenha a parte que lhe cabe é preciso que todos sejam chamados à discussão. A anomia do Legislativo e o correspondente ativismo do Judiciário não contribuem em nada para isso.