Nestas minhas férias escolares aproveitei para fazer leituras prazerosas, que me permitissem desanuviar o espírito. Um dos livros que li foi uma história detetivesca chamada “The Daughter of Time” de uma escritora inglesa chamada Josephine Tey. The Daughter of Time no caso é a verdade, a verdade que invariavelmente só vem à tona depois de muitos anos de calúnias e difamações. Um policial da Scotland Yard quebra a perna e é obrigado a ficar semanas enfurnado em um hospital contando carneirinhos. Uma amiga tenta distraí-lo trazendo figuras de personagens históricos sobre os quase há algum mistério. Lucrécia Bórgia foi vítima ou cúmplice do seu irmão, César Bórgia? O que de fato aconteceu com Luís XVII, filho de Luís XVI? De repente Grant, o detetive, se depara com a figura intrigante de Ricardo III rei da Inglaterra por um curto período de tempo (1483-1485). Ricardo III ficou eternizado nas peças de Shakespeare como o corcunda que usurpou o trono dos dois sobrinhos a quem encarcerou e mandou matar na Torre de Londres. Suas famosas palavras na peça – “Meu reino por um cavalo” – foram pronunciadas em meio à Batalha de Bosworth em que foi vencido e morto.
Pois bem, Grant ao ver o retrato de Ricardo, não consegue imaginá-lo como o crápula sanguinário pintado nos livros de história e começa uma investigação da sua cama, pedindo a amigos que tragam livros que contém a história do período. Com a ajuda de um jovem pesquisador que vasculha as informações no British Museum, Grant vai descobrindo furos na história contada ao longo dos séculos e chega à conclusão de que quando Ricardo foi morto e Henrique Tudor subiu ao trono com o nome de Henrique VII, os príncipes da Torre, como eram chamados os filhos de Eduardo IV, irmão de Ricardo, estavam vivos e quem provavelmente mandou matar as crianças foi Henrique, a quem não interessava ter por perto pretendentes mais legítimos à coroa. Henrique VII eliminou não só os irmãos de sua esposa, Elizabeth, como todos os outros pretendentes da dinastia anterior, dos Plantageneta, mas o fez de maneira sutil, sorrateira, sem que ninguém percebesse, seja fazendo seus inimigos desaparecer, como os meninos, seja mandando as pessoas inconvenientes para longe: a mãe dos meninos foi encerrada em um convento, Tyrrel, o homem que de fato matou os meninos, recebeu uma sinecura na França para nunca mais voltar. Ricardo, rei morto, rei posto, levou a má fama na história contada pelos Tudors e seus asseclas. Hoje em dia há até uma sociedade na Inglaterra cuja missão é a de restaurar a reputação do rei vilipendiado que na verdade foi um bom administrador, um excelente soldado e cuja fraqueza foi não ter se preparado suficientemente para lidar com as víboras traiçoeiras que lhe rodeavam.
Independentemente da verdade ou não dessa versão dos acontecimentos dada pela autora do livro (cuja visão mais benigna de Ricardo tem sido corroborada por historiadores modernos), ela aborda um ponto interessante. Quantas vezes tomamos certos fatos como verdadeiros e a partir deles tiramos conclusões que só se sustentam porque partimos do pressuposto de que tais fatos realmente existem? Ou pior, quantas vezes nega-se a nós pobres mortais acesso a certos fatos cruciais que, se conhecidos, nos levariam por caminhos surpreendentes e até perigosos para aqueles que têm interesse que tudo permaneça na escuridão?Uma pequena informação como a de que os meninos estavam vivos à época da morte de Ricardo nos leva a ter uma outra opinião sobre o caráter do rei e do seu sucessor, fazendo com que a lógica da narrativa vire de cabeça para baixo.
Toda essa minha história pode parecer abstrata, mas em nosso mundo global em que teoricamente temos acesso a todo tipo de informação, muitas vezes pequenos fatos nos escapam, não são suficientemente realçados ou são simplesmente varridos para debaixo do tapete. Se à época dos ataques do Japão a Pearl Harbor os americanos tivessem sido informados de que a Marinha americana não foi pega de surpresa e que na verdade sabia da iminente ação militar japonesa será que a entrada dos Estados Unidos na guerra teria sido possível? Será que a atitude do governo americano de alegar que o país fora traiçoeiramente atacado não era mais um elemento deliberadamente adicionado para transmitir a idéia de que o Japão era o agressor, o imperialista, enquanto que os Estados Unidos estavam simplesmente se defendendo? E quanto à Guerra no Iraque em 2003? Qual foi seu fundamento se não um pequeno fato amplamente divulgado por Bush, Blair e seus “amigos” de que Saddam Hussein escondia armas de destruição em massa? Sem tal indicação da índole belicosa do ditador iraquiano os Estados Unidos nunca poderiam ter apresentado ao mundo o conceito de guerra preventiva, da guerra para evitar futura agressão. Agora está em plena gestação uma outra guerra, que talvez nos traga o juízo final dadas as implicações que poderá ter. O Irã é a bola da vez, porque ousa ter um programa de produção de energia atômica, contrariando os desejos de Israel e Estados Unidos, os únicos países que têm direito de invadir, destruir e barbarizar em nome da luta contra o terrorismo. Pois bem, na semana passada um pequeno grande acontecimento se passou sem que tenha havido muita cobertura da imprensa. Em 11 de janeiro, Mostafa Ahmadi Roshan, diretor da usina de enriquecimento de urânio de Natanz, foi assassinado. Terá sido um ato para provocar uma reação do governo de Mahmoud Ahmadinejad e assim justificar a agressão ao país que faz parte do eixo do mal?
A Rússia, por intermédio do seu Vice-Primeiro Ministro para Assuntos Militares, Demitry Rogozin, declarou que um ataque ao Irã é uma “ameaça direta à nossa segurança”. Mas o que importa a opinião da Rússia não é mesmo? Afinal, ela pertence ao mesmo eixo de países não democráticos, ovelhas negras. Os “fatos” mostram isso: nas últimas eleições legislativas houve fraude e Putin se mantém no poder despoticamente ignorando os protestos de “milhares de pessoas”. Mas e se pequenos detalhes dessa narrativa fossem mudados de modo a tirar-lhe a coerência? Será que as eleições na Rússia são mais fraudadas do que nos Estados Unidos? Por acaso os ianques são exemplo de lisura na contagem de votos? Nas primárias republicanas de Iowa, Ron Paul um dos candidatos, considerado esquisito porque prega o fim da política imperialista americana e do apoio incondicional a Israel, denunciou que o procedimento de contagem não foi bem feito para que ele não ganhasse (http://www.infowars.com/ron-pauls-iowa-finish-biggest-fraud-since-kennedy-stole-the-west-virginia-primary/). E se fossem verdadeiras as alegações de que Alexei Navalny e Sergei Uldatsov, dois dos mais proeminentes organizadores dos protestos, têm ligações com a CIA, como pessoas de respeito têm alegado (www.paulcraigroberts.org)? Será que não veríamos as acusações contra Putin como uma tentativa de desacreditar aqueles que mais criticam a política externa americana, que tanto desequilíbrio traz à cena mundial?
No frigir dos ovos sempre contamos uma história com um propósito e este propósito é mais bem servido se os fatos se encaixam de forma a levarem logicamente à conclusão a que queremos que nosso interlocutor chegue. Ricardo III foi o vilão no século XV, Saddam Hussein, Mahmoud Ahmadinejad, Vladimir Putin o são no século XXI. Será que por trás de todas as maledicências e fofocas contadas a respeito dos ditadores atuais não existe um Henry Tudor traiçoeiro, ardiloso que sutilmente manipula todo mundo para ficar com a coroa?