browser icon
You are using an insecure version of your web browser. Please update your browser!
Using an outdated browser makes your computer unsafe. For a safer, faster, more enjoyable user experience, please update your browser today or try a newer browser.

Justiça

Posted by on 26/11/2012

            Neste meu terceiro ano de faculdade terei uma matéria que se chama Filosofia do Direito. Entre os pontos do programa incluem-se temas como “Justiça como ajuste natural”, Conflito e relatividade de valores”, “A Justiça como ajuste político”. Leremos, ao menos teoricamente, clássicos da literatura grega,  Os Persas, Antígona, Apologia de Sócrates. Digo teoricamente porque minha geração é pouca afeita à leitura e a geração X é menos ainda, curtida já desde a tenra idade nos videogames, computadores e toda a parafernália eletrônica. O aluno sempre estabelece prioridades, e assim lê apenas o estritamente necessário para não ser punido, isto é, para não deixar de ter nota em um seminário ou para fazer a prova. E o que ele prefere ler não são livros, revistas, mas cadernos de mocinhas boas alunas, aquelas que anotam tudo o que o professor fala com letra redonda e legível, que permitem que ele saiba tudo sobre a matéria um dia antes da prova.

            Entre as prioridades dos alunos não estão estas matérias ditas propedêuticas, isto é, que preparam o estudante para as matérias dogmáticas, semeando o terreno para que floresça um profissional cônscio do que deve fazer e do porquê está fazendo aquilo. Tanto isso é verdade que os professores dessas matérias, sempre na defensiva, na primeira aula já nos tentam convencer da importância do estudo da disciplina com frases bombásticas do tipo “A base do direito civil é a tragédia grega” ou “Vocês são alunos da São Francisco, devem aprender a refletir”. Admiramos a cultura dos professores propedêuticos – eles sempre são menos bitolados no Direito do que os professores que nos ensinam a lei, o Direito Positivo – e às vezes nos irritamos com a mania que têm de ficar perguntado, perguntando, falando de coisas das quais  ouvimos falar em alguma apostila de cursinho, Bíblia, Homero, Sócrates, Kant e outros. No frigir dos ovos, sempre achamos que filosofia, sociologia, história são firulas que devem manter-se em seu lugar: dar pouco trabalho em termos de leitura e ser no máximo uma boa distração do núcleo duro do curso que nos consome a mente.

            É uma grande lástima isso, porque a faculdade acaba formando bons operadores de direito, mas não tão bons cidadãos. Isso se vê na prática dos advogados no Brasil, na atuação do nosso Judiciário. Somos treinados para solucionar conflitos pela aplicação da lei, e a preocupação com a realização concreta da justiça fica tão abstrata e irrelevante como era nos tempos da faculdade. Nesse percurso intelectual e profissional nos transformamos em chicaneiros contumazes, usando das mais variadas gambiarras processuais para favorecer o cliente, seja para adiar uma decisão desfavorável de quem se sabe culpado, seja para apressar, por meio até de corrupção ativa, o trabalho de escrivãos.

            Ou então nos transformamos em juízes que se apegam à roupagem jurídica para justificar seu interesse em manter tudo como está. Há alguns anos o Supremo Tribunal Federal julgou uma ação que pleiteava a declaração de inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 45 da Constituição Federal, que ao estabelecer um número mínimo e máximo de deputados por Estado na prática criava uma desigualdade entre os eleitores, pois o voto dos cidadãos das regiões mais populosas vale menos do que o voto dos cidadãos das regiões menos populosas. O argumento utilizado pelos Ministros do Supremo para rechaçar a proposta, cujo objetivo era estabelecer um mínimo de equilíbrio na nossa Federação, era o de que o constituinte quis tal representação distorcida e o Judiciário não poderia influir na escolha soberana do Poder Legislativo. Oras bolas, o argumento seria mais robusto se o Judiciário sempre o seguisse a risca, o que não é o caso. Quando Fernando Henrique Cardoso desmontou grande parte da Constituição Cidadã por meio das emendas constitucionais que estabeleceram restrições à autonomia dos Estados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, autorizaram a entrada de capitais estrangeiros em áreas antes consideradas estratégicas como o petróleo, modificaram o regime de previdência dos funcionários públicos, nenhum membro do Judiciário arvorou-se em defensor dos constituintes de 1988, marinados então num vago acalanto social-democrata, contra os ataques neoliberais de FHC. O fato é que o STF raramente toma decisões que contrariam o Executivo, aliás um comportamento caprino compartilhado com o Legislativo, que acaba de aprovar o mínimo mínimo querido pela grande presidente.

            E os delegados, lembram-se do caso da Escola Base em São Paulo? Um menino acusou um professor de molestá-lo sexualmente, o delegado ainda na fase de inquérito e querendo os holofotes da mídia, bradou a ignomínia do atentado à criança, a escola foi depredada, destruída, os donos tiveram a vida despedaçada. E no fim tudo provou ser historinha da carochinha amplificada por uma mãe histérica e por um profissional do direito que não tinha a mínima consciência do que é fazer justiça. Tal espetacularização das atividades jurídicas tem se intensificado cada vez mais, vide o caso Nardoni e o estrelato do promotor Cembranelli, e o caso Eliza Samudio.

            Justiça, uma palavra de tão difícil conceituação, que têm deixado em parafuso todos os filósofos ocidentais, mas ao mesmo tempo um sentimento profundo, inegável, experimentado por todo ser humano. Estão aí os acontecimentos no mundo árabe para provar. O povo está enfrentando a polícia, o exército para satisfazer sua sede de justiça, seu sentimento de que uma sociedade governada por plutocratas cleptomaníacos, como Kaddafi e Mubarak, não é digna nem correta moralmente. O que quer que a justiça seja, dar a cada um o que é seu, dar a cada um o que lhe seja necessário para sobreviver,  a vingança divina contra os pecadores ou a justiça impessoal expressa na fala de Portia a Shylock em o Mercador de Veneza (“Though justice be thy plea, consider this: that in the course of justice none of us should see salvation”), o fato é que ela não pode ser descartada por quem quer que trabalhe com o direito, sob pena de se transformar em chancelador da corrupção, das barbaridades que ocorrem cotidianamente em nosso país.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *