Falei na semana passada dos factóides que estão aparecendo no Velho Continente para criar um cenário de desastre que leve à tomada de decisões em favor dos banqueiros, isto é que leve aqueles que decidem onde gastar e o quanto gastar a se convencerem que é preciso garantir a qualquer custo que as dívidas contraídas pelos países da periferia da Europa na época do boom econômico sejam rigorosamente pagas. O objetivo último é manter a ficção do euro. Digo ficção porque a essa altura já ficou óbvio a todo mundo que longe de trazer prosperidade e desenvolvimento a toda a Europa, o euro acabou criando duas classes de países. De um lado, aqueles que se beneficiaram da moeda forte, como a Alemanha, a Holanda, que já tinham uma indústria competitiva e que com a unificação econômica puderam vender seus produtos em todo o continente a países com indústria menos competitiva. De outro lado aqueles que se viciaram na moeda forte: incapazes de competir com os “irmãos do norte” em termos de tecnologia e expertise em geral, os países da zona do mediterrâneo aproveitaram a bonança do euro para fazerem investimentos imobiliários na maior parte das vezes inúteis, vivendo um período de falsa prosperidade à custa de empréstimos dos mais ricos que assim reciclavam seus próprios ganhos obtidos com os superávits comerciais e na balança de pagamentos.
Conjugaram-se aqui vários fatores. O interesse dos países mais ricos da Europa, que usaram o euro não para fomentar o real desenvolvimento das regiões mais atrasadas do continente, mas para se beneficiarem de um espaço econômico de livre concorrência em que eles já eram os mais fortes antes mesmo de a zona franca ter sido estabelecida. A ganância de bancos, a quem foi permitido emprestar dinheiro irresponsavelmente a governos e agentes privados perdulários que não só não tinham condições de pagar, mas que usaram mal os recursos (Na Espanha, há loteamentos imobiliários e aeroportos às moscas, na Grécia o dinheiro foi reciclado pelos donos do poder e hoje descansa tranquilamente nos Alpes Suíços, dizem as más línguas). E finalmente a estupidez de países mais fracos economicamente, que acreditaram no canto da sereia daqueles que lhes venderem o euro como passaporte da alegria de pertencer ao primeiro mundo e tomaram dinheiro a rodo na crença de que mesmo que não tivessem como pagar ficariam miraculosamente imunes às intempéries pelo simples fato de estarem blindados pela União Européia.
O resultado da fome com a vontade de comer é uma indigestão brava: as obrigações líquidas internacionais de Espanha, Portugal, Grécia e Irlanda estão próximas de 100% do PIB dos respectivos países, ou seja são nitidamente países devedores cujas economias não apresentam suficiente pujança para que possam pagar suas dívidas, pois não produzem artigos de alto valor agregado que possam ser exportados aos países do centro da Europa. E quem vai pagar o pato? Dona Angela Merkel, a primeira-ministra da Alemanha e que é a grande nação credora e maior beneficiária da fraqueza dos PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha), é a favor de austeras medidas fiscais a serem impostas a esses países para que eles sejam severamente punidos e passem a trilhar o caminho da retidão e do trabalho duro ao invés de se fiarem no dinheiro alheio para viverem vidas de primeiro-mundistas sem realmente terem capacidade econômica para tanto. A defenestração sem cerimônia de Papandraeou na Grécia, de Berlusconi na Itália, a pressão exercida sobre a Irlanda para que o Estado nacionalizasse as dívidas dos bancos, o que foi devidamente feito, tudo isso mostra que os países que ditam as regras no conserto europeu não aceitarão nada menos do que a rendição total.
Por outro lado, é preciso dar a César o que é de César, os alemães sempre se mostraram a favor de fazerem com que os bancos que emprestaram aos governos dos PIIGS arcassem com parte dos prejuízos e baixassem parte da dívida dos seus balanços. Não seria justo apenas o Banco Central Europeu, que usa dinheiro público, arcar com o ônus de emitir moeda e comprar títulos de governos incapazes de se financiar no mercado privado. Seria razoável exigir que os bancos pagassem por sua maliciosa temeridade de emprestar a quem não tinha meios de fazer bom uso do dinheiro.
Pois bem, com seu incrível poder de pressão, as elites financeiras têm conseguido sorrateiramente fazer valer seu ponto de vista radical de que qualquer tentativa de calote soberano vai levar à derrocada do euro e causar o desastre para todos. O último coelho da cartola dos mágicos da banca foi o factóide de 23 de novembro, quando um leilão de títulos de 10 anos do governo alemão, cujo valor era de 6 bilhões de euros, conseguiu arrecadar somente 3,6 bilhões. Um espanto, considerando que a Alemanha é o maior país credor, tem uma economia com fundamentos sólidos, com crescimento de 3,5% em 2010 e uma dívida pública de apenas 83% do PIB. Como podem duvidar da capacidade de pagamento da Alemanha? Será que os investidores estão loucos ou estão se fazendo de loucos para pressionarem o país a aceitar seus termos, isto é pagamento total ou nada feito?
Coincidência ou não depois desse leilão em que 35% dos títulos não tiveram compradores, o Ministro das Finanças teutônico, Wolfgang Schaeuble, disse que a Alemanha pode desistir da sua exigência de que os bancos privados que emprestaram aos governos da Grécia, Itália e Espanha devem aceitar parte do custo da ajuda financeira, baixando uma parte da dívida dos seus balanços. Aparentemente a blitzkrieg dos banqueiros está rendendo outros frutos: nesta semana foi realizado acordo entre os principais bancos centrais do mundo (EUA, Japão, Canadá, Suíça e Banco Central Europeu) que se comprometeram a garantir a liquidez do mercado financeiro até 2013 por meio do quantitative easing já feito nos EUA, que se resume a imprimir moeda. O medo dos alemães do fantasma da inflação que viveram na República de Weimar está se tornando uma preocupação menor relativamente à necessidade imperiosa de garantir a boa saúde dos bancos. Tempos interessantes e dramáticos esses em que vivemos. O povo europeu vai pagar o preço em termos de preços mais altos, desemprego, piora de serviços sociais, mas a ficção do euro estará preservada para que alguns poucos se locupletem.