Filhos para quê?

Ele lamentava a baixa taxa de natalidade dos nativos que estava transformando a população de Roma; ‘antigamente a benção de ter uma criança era o orgulho da mulher; agora ela se vangloria com Ennius de ‘preferir enfrentar uma batalha três vezes do que ter um filho.’

Trecho retirado do livro “De Re Rustica”, escrito por Marcus Terentius Varro (116 a.C.-26 a.C.), citado no livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981)

Eu não tive filhos e não me arrependo. Claro, nos momentos de lassidão e de fraqueza quando o indivíduo renega a si próprio, eu frequentemente me culpava de não ter feito o esforço de gerar um filho que pudesse dar continuidade a mim. Mas esse arrependimento tão vão funda-se em duas hipóteses igualmente duvidosas: a de que um filho necessariamente nos prolonga e que essa estranha mistura do bem e do mal, essa massa de particularidades ínfimas e bizarras que constitui uma pessoa merece ser prolongada.

Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121-180 d.C.), que seria imperador

    Prezados leitores, hoje nasceu o neto de um primo meu. No contexto da minha família, significa que dos oito netos que meus avós maternos tiveram, a geração que adentrará o século XXI e poderá chegar ao final dele só inclui um representante até agora. Essa baixa produção natalícia reflete as tendências no Brasil atual, em que em 2023, segundo dados do site “Our World in Data”, a natalidade estava em 1,62 filhos por mulher, o que leva a uma idade média do brasileiro de 33,94. Estamos abaixo do número de nascimentos necessário para mantermos a população no mesmo nível, o que gerará um efeito exponencial, pois aqueles que não nasceram agora deixarão reproduzir-se, diminuindo ainda mais as chances de nascimento. No entanto, há casos piores do que os do Brasil.

    Um desses casos é o do país que aumentou sua renda per capita em mais de 1.300% nos últimos 30 anos, cuja economia real aumentou 40 vezes de tamanho entre 1978 e 2010 e que conseguiu tirar 662 milhões de pessoas da extrema pobreza entre 1980 e 2008, de acordo com o Banco Mundial. Falo da China, que saiu do ranking dos países paupérrimos para entrar no clube dos países de renda média graças ao fato de ter experimentado o mais rápido desenvolvimento econômico de toda a história da humanidade.

    Apesar de todas essas conquistas, o Império do Meio tem um ponto fraco que pode colocar tudo a perder. De acordo com o “Our World in Data”, a taxa de natalidade em 2023 foi de 1 filho por mulher, o que faz com que a idade média do chinês seja de 39,07 anos. Esse número é equivalente ao da Ucrânia (0,98), um país em guerra há três anos, cujos homens em idade reprodutiva foram para a guerra ou fugiram. Considerando que quanto mais rico um país se torna menos pessoas nascem, se a China enriquecer ainda mais, a taxa de natalidade, que é menor do que a de um país desenvolvido como os Estados Unidos (1,62), pode chegar a um número perto de zero, o que condenará o país a um desaparecimento lento, gradual e seguro. Estima-se que a população da China, que em 2023 era de 1 bilhão e 420 milhões de habitantes, diminua para 500 milhões até 2100.

    A recusa em ter filhos não é algo moderno, típico da civilização tecnológica que permite às mulheres fazer sexo sem engravidar tomando pílulas anticoncepcionais. Conforme o trecho que abre este artigo, o escritor romano Varro, ao propor a retomada da vida simples de Roma antes de tornar-se a potência dominante em todo o Mediterrâneo, condenava os efeitos que a riqueza conquistada dos povos subjugados havia causado: as mulheres abastadas, vivendo uma vida de luxo e facilidades, fundada no trabalho de escravos, achavam coisas melhores a fazer do que fazer o esforço de procriar e cuidar dos rebentos. Para Varro, esse comportamento só poderia ser combatido por um retorno dos antigos valores morais da Roma formada por pequenos agricultores, o que implicava também o resgate da religião tradicional.

    Se a culpa pode ser atribuída às mulheres por preferirem o prazer à dor e ao risco do parto e à criação dos filhos, há também princípios filosóficos envolvidos na escolha de não deixar descendentes. O Imperador Adriano, conforme retratado por Marguerite Yourcenar, não vê sentido nenhum em procriar porque o ato de gerar uma vida não necessariamente perpetua a vida do criador. A maior parte dos grandes homens da História tiveram descendentes medíocres, se é que o tiveram, como é o caso de Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.), de Júlio César (100 a.C.-44 a.C.), de Aníbal (247 a.C-183 a.C.). E será que a vida merece ser perpetuada? Será o ser humano tão maravilhoso assim que mereça que cada indivíduo na Terra tenha como objeto principal deixar descendentes? Adriano não acreditava nisso e por isso não fez nenhum esforço em procriar.

    De forma que o comportamento que os chineses mostram de modo intenso no século XXI não é algo inédito na história da humanidade, seja devido à liberdade dada às mulheres na sociedade, que as levam a recusar-se a ser mães, seja devido ao espírito da época, que faz com que os indivíduos em geral não vejam nada especial no homem que mereça ser perpetuado. Se a diminuição da população for considerada um problema, uma solução seria limitar o acesso à educação pelas mulheres, que as levariam a ter menos perspectivas e a conformar-se com a realização pessoal pela maternidade. Ou cobrar impostos maiores de quem não se reproduz. Ou incutir nas pessoas o apreço pelo ser humano como espécie de rara qualidade.

    Prezados leitores, o biólogo inglês Francis Crick (1916-2004), um dos descobridores da estrutura em dupla hélice da molécula de DNA, que codifica o código genético, acreditava na hipótese da panspermia direcionada, isto é, de que a vida na Terra tenha sido semeada de maneira deliberada na forma de microrganismos que foram utilizados como espécie introduzida para dar início à evolução. E se a humanidade se der como objetivo lançar-se no espaço e espalhar sua semente pelo cosmos para viabilizar a vida em outros lugares caso a Terra se torne inabitável pelo colapso ambiental? Será que ter uma consciência torna o ser humano único e especial e digno de ser perpetuado? Não haverá então um motivo para dar continuidade à mistura de coisas boas e ruins que constitui uma pessoa? A resposta a essas perguntas e a decisão de procriar ou não será dada por cada massa de particularidades ínfimas e bizarras.

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A boa vida e a boa morte, de Lucrécio a Jesus Cristo

Mas os deuses não se levantam; eles não se levantam nem para nos advertir, nem para nos proteger, nem para nos recompensar, nem para nos punir.

Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121-180 d.C.), que seria imperador

Há deuses, afirma Lucrécio, mas eles habitam muito longe, em um isolamento feliz em relação ao pensamento ou aos cuidados do homem. Lá, “nos baluartes incandescentes do mundo” (extra flammantia moenia mundi) , fora do alcance dos nossos sacrifícios e orações, eles vivem como seguidores de Epicuro, evitando os assuntos mundanos, contentes com a contemplação da beleza e a prática da amizade e da paz.

Trecho retirado do livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre o pensamento do poeta e filósofo romano Lucrécio (94 a.C.-50 a.C.), autor “Da Natureza das Coisas”

    Prezados leitores, uma bonita cena da série Maximilian & Marie de Bourgogne, lançada em 2018, é o momento em que marido e mulher se despedem. Maria, Duquesa da Borgonha (1457-1482), havia caído de um cavalo enquanto caçava e agonizava há semanas, com múltiplas faturas, incluindo da coluna. As últimas palavras dela a Maximilian (1459-1508) são as seguintes: “Nossa vida não nos pertence, ela nos é dada de empréstimo. Viva e depois se junte a mim”. Esse pequeno discurso encerra duas ideias de tradições filosóficas opostas, mas que em uma pessoa como Marie, que nasce quando o Renascimento está em pleno florescimento, faz todo o sentido. Explico-me.

    A ideia da vida como um empréstimo vem direto de Lucrécio, que havia sido redescoberto pelo humanista italiano Poggio Braciolini (1380-1459) em 1417. Para o autor de De Rerum Natura, a vida não é algo sobre o qual temos propriedade absoluta e que nos pertença para sempre. Considerado um dos pais do materialismo moderno, a premissa básica do filósofo é que o mundo é feito das partículas primordiais, que ele chamava de primordia, elementa ou semina, e que hoje chamamos de átomos, e do vazio. Esses elementos indestrutíveis, imutáveis, sólidos, resistentes, silenciosos, inodoros e descoloridos se movem e se combinam uns com os outros de uma infinidade de maneiras, gerando tudo o que há na natureza, incluindo a própria vida.

    Sendo gerada a partir dos átomos, a vida tem a mesma natureza que a matéria. Aquilo a que chamamos de mente e consciência não existe independentemente da matéria e por isso não se pode falar que exista uma alma independente do corpo, isto é, que exista uma entidade imaterial que tenha existência autônoma em relação à matéria. Para Lucrécio, se a alma existisse sem o corpo ela seria inútil, porque ela não poderia sentir nada, nem tocar, nem ver, nem ouvir, nem cheirar, nem provar nada.

    Se a dita alma morre com o corpo, como encaixar o reino espiritual no mundo de Lucrécio? Conforme o trecho que abre este artigo, sua teologia concebe deuses totalmente apartados dos assuntos humanos, não envolvidos em nada com a matéria. Os deuses não criam nada e não são a causa dos acontecimentos. Afinal, como conceber que a vida no mundo material, cheia de desordem, de desperdício, de sofrimento e de injustiças, seja fruto de uma entidade espiritual? Nesse sentido o mundo é autossuficiente, obedecendo às suas próprias leis (a Lei) e não aos ditames de alguma divindade.

    Não é outra a concepção do Imperador Adriano, tal como concebido pela escritora Marguerite Yourcenar. A citação que abre este artigo é clara: os deuses são indiferentes a nós, pobres mortais, não interferindo para punir os maus e recompensar os justos, para nos proteger do mal advertindo-nos sobre nosso comportamento para que nós o corrijamos. Nesse sentido, tanto Adriano quanto Lucrécio apontam a inutilidade dos rituais religiosos. Nenhum sacrifício, nenhuma oração, nenhuma promessa terão influência sobre os deuses de modo a convencê-los a usarem seus poderes ao nosso favor.

    Para Lucrécio, a chave da vida é colocar sua mente em sintonia com a Lei que rege a matéria, sem temer os deuses, que não fazem nada nem para nos prejudicar nem para nos beneficiar, e sem temer a morte que é o mero corolário da vitalidade inesgotável do mundo: se a matéria está em eterno movimento e transformação, isso significa que sempre haverá destruição do velho para que o novo surja. Livre do terror da morte e da vingança dos deuses, o homem pode atingir a paz e levar a boa vida puramente material, que na prática significa a operação harmoniosa dos sentidos sob a orientação da razão a fazer inferências sobre as sensações recebidas.

    Essas explicações permitem-nos ver a contradição das últimas palavras de Maria de Borgonha. Ela adota Lucrécio ao falar a Maximiliano que a vida da combinação de partículas fundamentais que é o ser humano é efêmera, pois será logo dissolvida e os átomos se recombinarão. Ao mesmo tempo, ela não abandona a religião dominante na sua época o cristianismo, pois diz ao marido que eles se encontrarão na outra vida. Ora, se haverá um novo encontro isso significa que as almas se reunirão, que elas continuam a existir independentemente do corpo e que a vida delas é eterna. Um pé no mundo clássico e outro no mundo cristão, esta era a atitude de todo indivíduo das elites europeias bafejadas pelos ares do Renascimento.

    Prezados leitores, Maria de Borgonha, retratada na ficção televisiva, lidou com a aproximação da morte valendo-se da esperança cristã na ressurreição da carne e da lucidez clássica de constatar que não há vida sem morte e vice-versa. A quem consegue fazer tal síntese, talvez o encerramento do espetáculo da vida, seja ele cômico ou trágico, seja uma experiência menos solitária e agonizante. Afinal, segundo a lição de Lucrécio, a uma boa vida em sintonia com a Lei, segue uma boa morte. E a uma boa morte, segundo a lição de Jesus Cristo, segue a vida eterna.

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Panis et circensis ou Picanha e cerveja no cartão

Como se fosse um médico que receita mais algumas doses para um paciente que já vem perdendo o controle do consumo de álcool, o governo acelera fundo nos estímulos ao consumo. Desde janeiro de 2023, a gestão Lula adotou uma série de políticas para turbinar o crescimento da economia. Entre as iniciativas estão o novo Programa de Aceleração do Crescimento, a ampliação do Minha Casa, Minha Vida e liberações de saques do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.

Trecho retirado do artigo intitulado “O País dos Endividados” publicado na edição de VEJA de 16 de maio

[…] o próprio camponês, depois de ter conhecido e pilhado o mundo como soldado, não tinha vontade nem paciência para o trabalho solitário e as tarefas desprovidas de aventura da fazenda; ele preferia juntar-se ao proletariado turbulento da cidade, assistir de graça aos jogos excitantes do anfiteatro, receber milho barato do governo, vender seu voto a quem desse o maior lance ou prometesse mais coisas e perder-se na massa empobrecida e indistinta.

A sociedade romana, que havia sido uma comunidade de fazendeiros livres, dependia agora cada vez mais do saque externo e da escravidão interna.

Trecho retirado do livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre o efeito das conquistas militares sobre as camadas mais humildes de Roma

Vocês lutam e morrem para dar riqueza e luxo a outros. Vocês são chamados de donos do mundo, mas não há um metro de chão que vocês possam chamar de seu.

Trecho de discurso de Tibério Graco (162 a.C.-133 a.C.), tribuno da plebe que tentou realizar a reforma agrária e foi assassinado no Fórum Romano, citado pelo historiador grego Plutarco (46 d.C.-125 d.C.) em sua biografia do personagem

    Prezados leitores, há duas semanas cumpri minha obrigação tributária acessória de preencher a declaração de imposto de renda e mandá-la à Receita Federal. É um grande alívio livrar-se dessa incumbência, sentimento este que compartilhei com uma colega de trabalho, que ainda não havia preenchido a sua. Aproveitando o ensejo, ela pediu minha ajuda para cumprir a tarefa e ao longo de duas semanas trocamos mensagens sobre que valor colocar em que linha e em que aba do programa da Receita Federal. Provavelmente a contragosto, minha colega teve que compartilhar informações financeiras pessoais comigo.

    Foi então que percebi o exato tamanho do buraco em que ela se encontra, ao qual ela já aludira ao comentar sobre as dívidas que ela tem com o banco. Em termos práticos, isso a obriga a alocar mais da metade da sua renda mensal para o pagamento das prestações acordadas com o banco quando renegociou seu passivo. Em termos técnicos, minha colega está com o patrimônio líquido negativo e só não pode ser considerada insolvente porque ela ainda tem como amortizar os valores devidos, já que tem renda mensal garantida advinda de salário.

    Não sei em que ela empregou o dinheiro, e nem perguntei porque não é da minha conta. Se ao menos ela tivesse comprado algum bem durável ou um ativo permanente como um imóvel, esse capital tomado de terceiro teria tido algum uso que renderia frutos no futuro. Com base no que sei da vida dela, o dinheiro foi utilizado para consumo, mais de membros da família dela, do que dela mesma. Minha colega tem pouca educação financeira, o que é uma falha, mas não se pode negar que é generosa. Nisso, ela apresenta o comportamento de milhões de brasileiros.

    De acordo com a reportagem de VEJA citada na abertura deste artigo, mais de 70 milhões de brasileiros estão inadimplentes, o que perfaz 42% da população adulta do país. Essa situação não é de estranhar considerando o tipo de economia que se pratica em terras tropicais democráticas. De acordo com dados retirados do site do Banco Mundial, em 2023 a taxa de poupança do Brasil e a formação bruta de capital estavam em 16% do PIB. Para efeito de comparação, os números da China, a locomotiva industrial do século 21, esses números foram de 44% e 42%, respectivamente. Não havendo dinheiro guardado para investir e fazer a economia girar, como é feito no tigre asiático, só resta ao Brasil estimular o consumo das famílias pela oferta de crédito para que haja crescimento econômico.

    Entra governo e sai governo, é este nacional-consumismo, termo cunhado pelo ex-candidato à presidência, Ciro Gomes, que é praticado no Brasil como o caminho mais fácil para disfarçar a falta de investimentos que expandissem a infraestrutura do país e a capacidade produtiva. Não havendo investimento de capital em novas fábricas, ferrovias, pontes, portos e aeroportos que ampliem a oferta de produtos para um nível suficiente, facilitem a atividade econômica, aumentem a produtividade e a renda dos trabalhadores de maneira real e consistente ao longo dos anos, a saída é manter as pessoas comprando tudo a prazo, desde bens de consumo não duráveis, passando pelos duráveis e chegando aos imóveis.

    O Presidente Lula havia prometido picanha e cerveja para todo mundo durante a campanha presidencial de 2022. Isso só seria possível se a renda das famílias crescesse a um ritmo muito maior do que o preço dos alimentos, o que não ocorre. Em 2025, de acordo com estudo do economista André Braz, da FGV, os alimentos já consomem 22,61% do orçamento das famílias de renda mais baixa (de 1 a 1,5 salário mínimo), sendo que em 2018 essa porcentagem era de 18,44%. Não havendo renda suficiente, o consumo só se viabiliza pelo endividamento. Saem a picanha e a cerveja no churrasco do domingo, entra a oferta de dinheiro pelo financiamento do cartão de crédito e dos automóveis, pelo cheque especial, pelo crédito consignado, pelo crédito pessoal e pelo crédito imobiliário.

    Se o Presidente Lula puder mostrar no ano que vem aumento do PIB baseado no consumo e aumento da renda pelo aquecimento da economia, não será difícil que ele seja reeleito pelos beneficiários do bolsa-familia, do auxílio-gás, do Pé de Meia e do crédito facilitado em geral. Nesse sentido, ele segue uma receita já testada há séculos, quando os romanos a inventaram e a colocaram em prática: neutralizar o descontentamento da massa da população tornando-a dependente do Estado.

    A expansão territorial de Roma, acelerada depois da destruição de Cartago em 146 a.C., teve profundos efeitos sobre a economia: inundou a Península Itálica de escravos que achataram o salário dos homens livres e de produtos agrícolas importados das regiões conquistadas. Isso diminuiu os preços e inviabilizou a produção agrícola dos pequenos proprietários, que acabaram perdendo suas terras para os grandes latifundiários que podiam investir na produção e contratar escravos a não poder mais para a labuta rural. O resultado foi o desemprego nas cidades e a quebradeira no campo, levando a que se criassem as condições para o surgimento de uma massa de pessoas destituídas que acabaram fluindo para Roma. O que fazer com elas?

    A solução profunda do problema seria a distribuição de terras, a formação de novas colônias nos territórios incorporados ao domínio romano e o apoio governamental a que elas pudessem ter sucesso para que esses ex-trabalhadores do campo tornados soldados durante as guerras tivessem alguma perspectiva em sua vida civil. Os que tentaram colocar em práticas essa solução como Tibério Graco e seu irmão Caio Graco (154 a.C.-121 a.C.), tiveram morte violenta. Por outro lado, as elites romanas acharam um meio de lidar com o a questão sem interferir nos seus interesses. Conforme o trecho que abre este artigo, para os destituídos de Roma não havia emprego nem função social, mas havia o que lhes mantinha ocupados: comida barata e entretenimento à vontade, nas lutas de gladiadores, nos jogos, nas corridas, nas procissões, nos festivais.

    Prezados leitores, Roma oferecia pão e circo, nós no Brasil, oferecemos jogatina liberada na internet, crédito fácil e um pouco de picanha e cerveja na medida do que é possível parcelar no cartão de crédito. Oxalá que a democracia tupiniquim, que se mantém há 40 anos seguindo a receita de distrair as massas, não termine nas mãos de um ditador como a República romana terminou nas mãos de Júlio César (100 a.C.-44 a.C.). Aguardemos uma solução mais satisfatória para o povo brasileiro.

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Meras coincidências?

O botim das províncias fornecia os recursos para aquela orgia de riqueza corrupta e mesquinha que iria consumir a República em revolução. […] À medida que a moeda se multiplicava mais rápido do que as construções, os proprietários de imóveis na capital triplicavam sua fortuna sem mover um músculo ou nervo. A indústria ficava para trás, enquanto o comércio florescia; Roma não tinha que produzir bens; ela pegava o dinheiro do mundo e o usava para pagar pelos produtos mundiais. […] Roma estava se tornando não o centro industrial ou comercial, mas o centro financeiro e político do mundo do homem branco.

Trecho retirado do livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre o efeito das conquistas militares sobre Roma

Na verdade, a maioria dos americanos tornou-se desconectada da indústria. Eles realmente não entendem o que a indústria moderna exige. A ambição de restaurar a indústria americana é real, mas os instrumentos utilizados por Trump baseiam-se na economia e nas finanças (economia e finanças muito ruins, por sinal), não na indústria. Se os Estados Unidos quiserem realmente trazer a indústria de volta, eles terão que reconstruir todo o ecossistema para dar-lhe apoio. Não se trata de consertar um único setor, ajustar a direção das políticas, ou melhorar uma capacidade específica, muito menos somente aumentar tarifas.

Trecho retirado do artigo “Rare Earth and desindustrialziation” escrito por Hua Bin e publicado em 14 de maio

    Prezados leitores, em 2024 visitei a Tunísia, que foi o epicentro do Império Cartaginês (550 a.C.-202 a.C.), o qual se estendia por terras que atualmente se localizam na Tunísia, Marrocos, Espanha Portugal e Itália. O que se vê de autenticamente cartaginês é muito pouco. Há as ruínas do porto e dos locais onde os cartagineses guardavam os navios da sua famosa frota. E um cemitério onde, de acordo com a versão mais aceita da história, contada pelos vencedores, estão enterradas crianças que eram jogadas ao fogo vivas como sacrifício ao Deus Baal.

    As outras ruínas são na verdade construções que datam da época romana, porque depois que Roma destruiu Cartago em 146 a.C. o local foi abandonado e foi só décadas depois que Roma decidiu reocupar a antiga Cartago por sua localização estratégica. Tanto é assim que a joia turística da Tunísia é o Museu Nacional do Bardo, que reúne uma das maiores e mais belas coleções de mosaicos romanos do mundo. De maneira que, embora a famosa Cartago fique perto de Túnis, a capital do país, o que a Tunísia tem a oferecer em termos de tesouros artísticos é seu passado como província romana, e não como sede do Império Cartaginês.

    A destruição do maior rival de Roma no Mediterrâneo marcou um ponto de inflexão na história da cidade porque lhe permitiu não só se apossar dos espólios do império cartaginês, a Oeste, mas lhe deu o impulso de conquistar toda a bacia do Mediterrâneo a Leste, incluindo as colônias gregas na península itálica e a própria Grécia. O efeito desse domínio inconteste do Mar que ligava a Europa, a África e a Ásia foi a de viabilizar a construção de um império cujas características nos soam familiares em pleno século XXI.

    Conforme o trecho citado na abertura deste artigo, as conquistas militares de Roma lhe permitiram amealhar grande quantidade de dinheiro, o que revolucionou sua organização econômica. Da Espanha, ex-colônia de Cartago, os generais romanos trouxeram ferro, prata e ouro, além claro, de prisioneiros de guerra, que seriam transformados em escravos. Cartago, Macedônia e Síria tiveram que pagar grandes indenizações de guerra, além de contribuir também com mão de obra forçada. Esse influxo de dinheiro ficava muito além da capacidade de produção e construção de Roma, de forma que os proprietários de imóveis os vendiam a preços estratosféricos e o comércio com as províncias conquistadas era estimulado pela abundância de meios de pagamento e pela necessidade de suprir a demanda dos romanos por bens não produzidos localmente. De uma sociedade agrária, formada por agricultores que viviam de maneira simples, pois precisavam poupar para enfrentar os desastres da natureza, passou-se a uma sociedade de opulência, que tinha acesso a tudo o que podia ser comprado com o ouro e a prata obtidos pela pilhagem das regiões submetidas pela força das legiões, inclusive a produtos vindos da China.

    O resultado sobre o modo de vida dos cidadãos romanos não tardou a vir. A riqueza obtida pelas conquistas militares, sem que nenhum esforço agrícola ou industrial precisasse ser feito, levou a uma vida de luxo e de indolência, em que a atividade econômica mais importante era a especulação, seja pelo comércio, seja pela participação em organizações que prestavam serviços para o governo, que hoje chamaríamos de empreiteiras. A indolência levou a um relaxamento da moral, pois viver uma vida fácil e libertina não trazia nenhuma consequência ruim. A abundância de mão de obra escrava tirou das classes mais baixas a oportunidade de trabalhar, levando ao surgimento de um proletariado urbano que sobrevivia às custas da distribuição de alimentos pelo governo e que não tinha nenhum papel a desempenhar na sociedade.

    Resumindo, economia dependente de redes de suprimento globais, excesso de moeda, desigualdade crescente de renda, financeirização da economia, desindustrialização, elites interessadas apenas em manter seus privilégios, sem propor nada de novo, pois o status quo as beneficiava, guerras constantes para a obtenção de mais espólios e fazer o sistema continuar a funcionar. Ora, não são essas as características do Império Americano em pleno século XXI? Os números não nos deixam mentir.

    Em 2024, o déficit comercial dos Estados Unidos, isto é a diferença entre importações e exportações foi de 1.202,329,50 de dólares, de acordo com o United States Census Bureau. De acordo com o Banco Central Americano, em 1º de janeiro de 2025 havia 2,37 trilhões de dólares americanos circulando no mundo. Em 2024, a atividade industrial contribuiu com 10% do PIB americano, ao passo que o setor financeiro, securitário e imobiliário contribuiu com 21,2% (fonte: Estatista). Quanto às guerras, desde 1775, com o início da Guerra de Independência, os Estados Unidos estiveram envolvidos em 12 grandes guerras (fonte: Wikipedia), para não falar das intervenções militares pontuais, como bombardeios, envio de mísseis, ajuda militar a grupos rebeldes. Finalmente, os gráficos preparados pelo Gabinete de Orçamento do Congresso dos Estados Unidos mostram que os 20% mais pobres viram sua renda estagnar desde 1980 até a década de 20 do século XXI, ao passo que o 1% mais rico viu sua renda aumentar em mais de 800% no mesmo período.

    Não é de estranhar que consideradas as semelhanças que o Império Americano tem com o Império Romano, o presidente americano Donald Trump queira fazer algo para evitar a implosão dos Estados Unidos, tal como aconteceu com Roma, que em 476 d.C. sucumbiu às invasões dos povos bárbaros. Além de estar procurando fazer a paz com a Rússia a respeito da guerra na Ucrânia e conversando com o Irã em busca de um acordo sobre o uso de energia nuclear por aquele país, Trump quer trazer prosperidade para os americanos fazendo a indústria voltar aos Estados Unidos. Quais são as chances de ele ter sucesso?

    Para Hua Bin, cujo artigo é citado na abertura deste artigo, impor tarifas em produtos importados para torná-los mais caros e incentivar a produção local não é a solução. É preciso ir muito mais fundo e criar o ambiente adequado, construindo fábricas e infraestrutura, fazendo investimentos que só terão retorno no longo prazo, adquirindo equipamentos, treinando trabalhadores. O esforço industrial exige o concerto de vários setores da sociedade – universidades, empresários, instituições governamentais – de maneira a estabelecer as políticas de incentivo, a infraestrutura física que diminui o custo de fazer negócios para a iniciativa privada, a oferta de recursos humanos qualificados que viabiliza a inovação. Isso é tarefa não para um mandato presidencial de 4 anos, mas para décadas de planejamento, persistência e trabalho duro contínuos. No máximo, Trump pode começar a executar o projeto de reindustrialização, começar a estabelecer as fundações do edifício, e torcer para que o próximo governo dê continuidade à obra.

    Prezados leitores, a lição da história parece ser que todo império morre, porque a vida se torna tão fácil para alguns que eles acabam deitando-se em berço esplêndido e não têm mais incentivos para achar novos caminhos quando as circunstâncias mudam e surgem desafios.  Roma e os Estados Unidos começaram como sociedades de cidadãos diligentes e autônomos e acabaram se tornando sociedades dependentes do comércio internacional e gozando dos privilégios do poder do seu dinheiro para comprar e conquistar tudo. Já vimos como terminou Roma. Aguardemos para ver se o Império Americano será desmantelado pacificamente ou acabará em sangue e violência.

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Conclave

Esse fanático nem desconfiava que alguém pudesse raciocinar com base em premissas diferentes das suas; eu oferecia a este povo desprezado um local dentre outros na comunidade romana: Jerusalém, por intermédio de Akiba, me transmitia sua vontade de permanecer até o fim a fortaleza de uma raça e de um deus isolados do gênero humano. Esse raciocínio absurdo era expresso por intermédio de uma sutileza fatigante: eu tive que aguentar um longo rol de razões, deduzidas de maneira erudita umas das outras, da superioridade de Israel.

Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121-180 d.C.), que seria imperador

Havia algo de frio e impessoal nos deuses da religião oficial; eles podiam ser comprados por oferendas ou sacrifícios, mas raramente conseguiam proporcionar conforto ou inspiração individual. […] Quando novos cultos fluíram do Leste conquistado, foi esse culto oficial que decaiu primeiro, enquanto a fé pitoresca e íntima e o ritual do campo sobreviveu de maneira paciente e obstinada.

Trecho retirado do livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981) sobre a religião romana

[…] Jeová, o Deus dos Judeus, era no início acima de tudo a Divindade de uma tribo semítica Que protegia Seu próprio povo. Junto com Ele, havia deuses que reinavam sobre outras tribos. Não há nessa época nenhuma sugestão de um outro mundo. O Deus e Senhor de Israel comandava o destino terreno de Sua tribo. Ele é um Deus ciumento e não permitirá que Seu povo tenha outros deuses além Dele.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West” do filósofo e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970)

    Prezados leitores, por volta de 130, portanto no segundo século da era cristã, o imperador Adriano está em Alexandria, no Egito, que é então província de Roma. Assim como qualquer mero mortal no século XXI de posse do seu celular, Adriano visita os pontos turísticos da cidade. Se hoje há a nova biblioteca de Alexandria, àquela época havia a biblioteca original e outras três grandes atrações que foram tragadas pelas areias do tempo: o Farol de Alexandria, o mausoléu de Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.) e o mausoléu de Marco Antônio (83 a.C.-30 a.C.) e de Cleópatra (70 a.C.-30 a.C.). O farol de Alexandria está no fundo do mar e ao menos restos dele foram descobertos no porto da cidade em 1998. Já os mausoléus são o Santo Graal da arqueologia ocidental: procurar muitos têm procurado, mas nada ainda foi achado.

    Adriano era mais do que um turista privilegiado, ele era o líder do Império Romano que ainda duraria mais duzentos anos. Era preciso que ele cumprisse funções de chefe de Estado e por isso recebia delegações com representantes de reinos e povos mais ou menos subjugados por Roma. Um deles eram os judeus. Àquela época, Adriano já havia ordenado a instalação da colônia Aelia Capitolina em Jerusalém que estava então em ruínas, depois da destruição pela segunda vez do Templo, em 70 d.C. Conforme o trecho que abre este artigo, o imperador recebe Akiba (40 d.C.-135 d.C.), o chefe da delegação dos judeus, que vem pedir-lhe que deixe Jerusalém como está, para que o povo judeu possa continuar a viver de acordo com suas tradições. Adriano considera os argumentos colocados pelo líder religioso absurdos e se irrita com a arenga de Akiba, principalmente pelo fato de que ele imperador podia entender quais eram as premissas do raciocínio do judeu, mas este não podia sequer considerar que pudesse haver outras premissas diferentes das suas que levassem a outras conclusões. E quais eram os respectivos princípios fundamentais?

    Conforme explica Bertrand Russell no trecho que abre este artigo, a religião judaica era não só monoteísta como exclusivista. Havia um só Deus, Jeová, e este havia feito uma aliança com o povo judeu e somente com ele. Jeová tratava dos assuntos do povo judeu e mais nada e ai do judeu que quebrasse o pacto firmado com Jeová, que exigia fidelidade absoluta. Não é de admirar que Akiba estivesse solicitando a Adriano que a Aelia Capitolina fosse abortada. Instalar uma colônia romana necessariamente levaria à construção de templos dedicados aos deuses romanos. Como aceitar que isso fosse feito em Jerusalém, a capital do povo que tinha aliança com Jeová? Um templo em homenagem a Vênus afrontaria a autoridade de Jeová em território onde ele gozava de jurisdição absoluta.

    Ora, Adriano jamais poderia levar em consideração nenhum dos argumentos propostos por Akiba justamente porque ele não aceitava a premissa que o Deus cultuado por uma tribo específica deveria ter prioridade sobre os deuses de outros povos. Não só a religião romana era politeísta, aceitando diferentes divindades em seu panteão, mas as relações com a divindade eram bem diferentes. Jeová dava ordens aos seus jurisdicionados, comandando-os a atravessar o deserto ou o Mar Vermelho, e estabelecia um código de conduta moral, consubstanciado nos Dez Mandamentos. Na religião romana, a relação do homem com a divindade era transacional.

    Conforme o trecho que abre este artigo, o fiel sacrificava animais ou até seres humanos, fazia oferendas de objetos ou alimentos, cumpria rituais precisos, para receber em troca a satisfação de algum desejo ou a mitigação de algum sofrimento. Os romanos não obedeciam a seus deuses como os judeus obedeciam a Jeová, em uma típica relação de pai e filho. Eles negociavam com seus deuses com o objetivo de celebrar um contrato em que as partes tinham obrigações mútuas. A obrigação do homem era ou executar bem o ritual ou fazer o sacrifício ou a oferenda proporcionais ao pedido. A obrigação da divindade era entregar a contraprestação, qual seja, satisfazer o desejo do postulante.

    Não admira que os romanos tenham sido os pais do Direito Ocidental, dado seu apreço pelo legalismo, pelos procedimentos detalhadamente estabelecidos e pelo formalismo. No entanto, não admira que, para que o Império Romano pudesse sobreviver como entidade supranacional, transmutando-se na Igreja Católica, ele tenha que ter importado um culto do Oriente, o Cristianismo, que em seu início era um judaísmo reformado e que adicionou a emoção da relação subjetiva do homem com o Deus único e verdadeiro, substituindo a relação fria e objetiva vigente sob os princípios romanos. Foi só quando Paulo de Tarso colocou de lado a circuncisão e as restrições alimentares que essa seita de judeus heterodoxos se tornou universalmente aceitável e pôde dar origem à instituição com sede em Roma e chefiada por seu pontifex maximus, que era o chefe dos sacerdotes encarregados da religião do Estado, isto é, das práticas transacionais com as divindades para o bem da coletividade dos cidadãos romanos.

    Prezados leitores, nesses tempos de conclave para a escolha do novo papa, não só habemus papam em latim lembra as origens da Igreja Católica no Império Romano. O ritual da fumaça preta ou branca, as palavras precisas ditas pelo cardeal eleito por seus pares para aceitar o encargo de pontifex maximus são parte do legado a que Adriano chamou de “comunidade romana”, os valores que embasavam Roma como instituição imperial. No final das contas, tanto o ponto de vista de Adriano quanto o de Akiba acabaram sobrevivendo na Igreja Católica, afinal ela é monoteísta, mas cultua uma infinidade de santos. Enquanto esperamos a revelação do novo chefe de Estado e chefe de governo do Vaticano, lembremos que Adriano, nas profundezas do seu mausoléu no Castelo Sant’Angelo, à beira do Rio Tibre, poderá olhar o homem que acenará da sacada na Praça de São Pedro, a quatro quilômetros dali, como seu sucessor.

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