Ele lamentava a baixa taxa de natalidade dos nativos que estava transformando a população de Roma; ‘antigamente a benção de ter uma criança era o orgulho da mulher; agora ela se vangloria com Ennius de ‘preferir enfrentar uma batalha três vezes do que ter um filho.’
Trecho retirado do livro “De Re Rustica”, escrito por Marcus Terentius Varro (116 a.C.-26 a.C.), citado no livro “Caesar and Christ”, escrito pelo filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981)
Eu não tive filhos e não me arrependo. Claro, nos momentos de lassidão e de fraqueza quando o indivíduo renega a si próprio, eu frequentemente me culpava de não ter feito o esforço de gerar um filho que pudesse dar continuidade a mim. Mas esse arrependimento tão vão funda-se em duas hipóteses igualmente duvidosas: a de que um filho necessariamente nos prolonga e que essa estranha mistura do bem e do mal, essa massa de particularidades ínfimas e bizarras que constitui uma pessoa merece ser prolongada.
Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121-180 d.C.), que seria imperador
Prezados leitores, hoje nasceu o neto de um primo meu. No contexto da minha família, significa que dos oito netos que meus avós maternos tiveram, a geração que adentrará o século XXI e poderá chegar ao final dele só inclui um representante até agora. Essa baixa produção natalícia reflete as tendências no Brasil atual, em que em 2023, segundo dados do site “Our World in Data”, a natalidade estava em 1,62 filhos por mulher, o que leva a uma idade média do brasileiro de 33,94. Estamos abaixo do número de nascimentos necessário para mantermos a população no mesmo nível, o que gerará um efeito exponencial, pois aqueles que não nasceram agora deixarão reproduzir-se, diminuindo ainda mais as chances de nascimento. No entanto, há casos piores do que os do Brasil.
Um desses casos é o do país que aumentou sua renda per capita em mais de 1.300% nos últimos 30 anos, cuja economia real aumentou 40 vezes de tamanho entre 1978 e 2010 e que conseguiu tirar 662 milhões de pessoas da extrema pobreza entre 1980 e 2008, de acordo com o Banco Mundial. Falo da China, que saiu do ranking dos países paupérrimos para entrar no clube dos países de renda média graças ao fato de ter experimentado o mais rápido desenvolvimento econômico de toda a história da humanidade.
Apesar de todas essas conquistas, o Império do Meio tem um ponto fraco que pode colocar tudo a perder. De acordo com o “Our World in Data”, a taxa de natalidade em 2023 foi de 1 filho por mulher, o que faz com que a idade média do chinês seja de 39,07 anos. Esse número é equivalente ao da Ucrânia (0,98), um país em guerra há três anos, cujos homens em idade reprodutiva foram para a guerra ou fugiram. Considerando que quanto mais rico um país se torna menos pessoas nascem, se a China enriquecer ainda mais, a taxa de natalidade, que é menor do que a de um país desenvolvido como os Estados Unidos (1,62), pode chegar a um número perto de zero, o que condenará o país a um desaparecimento lento, gradual e seguro. Estima-se que a população da China, que em 2023 era de 1 bilhão e 420 milhões de habitantes, diminua para 500 milhões até 2100.
A recusa em ter filhos não é algo moderno, típico da civilização tecnológica que permite às mulheres fazer sexo sem engravidar tomando pílulas anticoncepcionais. Conforme o trecho que abre este artigo, o escritor romano Varro, ao propor a retomada da vida simples de Roma antes de tornar-se a potência dominante em todo o Mediterrâneo, condenava os efeitos que a riqueza conquistada dos povos subjugados havia causado: as mulheres abastadas, vivendo uma vida de luxo e facilidades, fundada no trabalho de escravos, achavam coisas melhores a fazer do que fazer o esforço de procriar e cuidar dos rebentos. Para Varro, esse comportamento só poderia ser combatido por um retorno dos antigos valores morais da Roma formada por pequenos agricultores, o que implicava também o resgate da religião tradicional.
Se a culpa pode ser atribuída às mulheres por preferirem o prazer à dor e ao risco do parto e à criação dos filhos, há também princípios filosóficos envolvidos na escolha de não deixar descendentes. O Imperador Adriano, conforme retratado por Marguerite Yourcenar, não vê sentido nenhum em procriar porque o ato de gerar uma vida não necessariamente perpetua a vida do criador. A maior parte dos grandes homens da História tiveram descendentes medíocres, se é que o tiveram, como é o caso de Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.), de Júlio César (100 a.C.-44 a.C.), de Aníbal (247 a.C-183 a.C.). E será que a vida merece ser perpetuada? Será o ser humano tão maravilhoso assim que mereça que cada indivíduo na Terra tenha como objeto principal deixar descendentes? Adriano não acreditava nisso e por isso não fez nenhum esforço em procriar.
De forma que o comportamento que os chineses mostram de modo intenso no século XXI não é algo inédito na história da humanidade, seja devido à liberdade dada às mulheres na sociedade, que as levam a recusar-se a ser mães, seja devido ao espírito da época, que faz com que os indivíduos em geral não vejam nada especial no homem que mereça ser perpetuado. Se a diminuição da população for considerada um problema, uma solução seria limitar o acesso à educação pelas mulheres, que as levariam a ter menos perspectivas e a conformar-se com a realização pessoal pela maternidade. Ou cobrar impostos maiores de quem não se reproduz. Ou incutir nas pessoas o apreço pelo ser humano como espécie de rara qualidade.
Prezados leitores, o biólogo inglês Francis Crick (1916-2004), um dos descobridores da estrutura em dupla hélice da molécula de DNA, que codifica o código genético, acreditava na hipótese da panspermia direcionada, isto é, de que a vida na Terra tenha sido semeada de maneira deliberada na forma de microrganismos que foram utilizados como espécie introduzida para dar início à evolução. E se a humanidade se der como objetivo lançar-se no espaço e espalhar sua semente pelo cosmos para viabilizar a vida em outros lugares caso a Terra se torne inabitável pelo colapso ambiental? Será que ter uma consciência torna o ser humano único e especial e digno de ser perpetuado? Não haverá então um motivo para dar continuidade à mistura de coisas boas e ruins que constitui uma pessoa? A resposta a essas perguntas e a decisão de procriar ou não será dada por cada massa de particularidades ínfimas e bizarras.