Plantations de dados

Dono de 1,5% do mercado global de data centers, com 181 unidades, o Brasil tem se mostrado um país atrativo para o setor. Esse mercado cresceu 628% entre 2013 e 2023 no país, segundo o estudo “Brazil data center report”, da consultoria imobiliária JLL.

Trecho retirado do artigo “Centros de dados sustentáveis”, publicado na edição de março da revista Pesquisa FAPESP

Mantemos a péssima posição internacional na qualidade da educação e na desigualdade com que ela é oferecida. O número de adultos analfabetos continua praticamente o mesmo. Não temos uma estratégia para abolir a pobreza e dar à população instrumentos para sobreviver sem necessidade de políticas de compensação. Continuamos, enfim, sendo um país distante da inovação tecnológica, agora especialmente, com os avanços extraordinários da inteligência artificial. Seguimos sem estratégia de desenvolvimento para a economia do futuro, baseada no conhecimento e na diversidade ecológica.

Trecho retirado do artigo “Democracia Viva” escrito pelo ex-reitor da Universidade de Brasília, ex-Ministro da Educação e ex-senador Cristovam Buarque (1944-

    Prezados leitores, já repararam que atualmente para a pessoa mostrar suas credenciais intelectuais ela precisa pincelar seu discurso com palavras em inglês? Isso mostra que ela teve acesso às fontes originais do saber, que está antenada com o que há de mais moderno em termos de conceitos e teorias. Deparei-me com isso ao assistir a uma palestra sobre inteligência artificial. Ao longo de uma hora e meia, ouvi várias vezes “Better together” que é um lema usado no mundo de IA para enfatizar a necessidade do ser humano trabalhar em conjunto com as máquinas para resultados melhores. Ouvi também a palestrante usar “hype” para designar o fenômeno de todo mundo dizer que usa IA, mesmo sem fazê-lo. Ela poderia ter falado simplesmente exagero, mas preferiu a palavra em inglês, talvez porque ache que haja uma nuance de sentido não captada por nosso humilde idioma, que nunca foi usado para criar nada em termos de ciência da computação.

    Em suma, tanto na forma quanto no conteúdo do seu discurso, a palestrante mostrou ser moldada por seu contato com os Estados Unidos, cuja cultura ela absorve e transmite aos seus ouvintes. “The US innovates, the EU regulates and China replicates” foi uma de suas tiradas que resumem sua visão de mundo. Visão esta que está sendo tornada obsoleta pelos fatos. De acordo com o Australia Strategic Policy Institute, um centro de estudos patrocinado pelo governo australiano, no ano 2000 os Estados Unidos eram os líderes em 60 das 64 tecnologías críticas que moldarão a economia do futuro, como a inteligência artificial, a robótica, a tecnologia quântica, a cibernética, a biotecnologia, materiais avançados, dentre outras. Já no último levantamento do instituto, a China lidera em 57 dessas 64 tecnologias. Portanto, apesar de a frase ser engraçada e mostrar o conhecimento pela palestrante do que falam nos Estados Unidos, ela está sendo desmentida pelos avanços gigantescos que os chineses têm feito para evitar a armadilha dos países de renda média, isto é, de países que eram subdesenvolvidos até a década de 70 e, absorvendo a tecnologia do Ocidente, conseguiram industrializar-se produzindo produtos de baixo valor agregado. A China quer galgar um patamar mais alto, ela quer entrar no seleto clube dos países que não copiam, mas criam e estabelecem o padrão para o mundo. Nós no Brasil ainda achamos que são principalmente os Estados Unidos que fazem isso e certamente a palestrante, a cuja fala bilíngue assisti, certamente compartilha dessa opinião.

    Não me admira que seja assim. Ela é advogada em uma grande firma que faz negócios com gringos que querem investir no Brasil, portanto não pode ser uma grande defensora de soberania econômica em relação a países de estrangeiros. O momento mais interessante da palestra foi aquele em que ela abordou a criação de data centers no Brasil, que está se transformando num grande filão de negócios imobiliários, afinal é preciso comprar terrenos para instalar os equipamentos que processarão os dados que servirão de base para o desenvolvimento dos modelos de IA generativa. Segundo ela, o problema aqui é a falta de segurança jurídica, a carga tributária e a falta de infraestrutura de cabeamento para a transmissão dos dados.

    A questão de criação de centros de dados no Brasil é tão importante que há um grupo de trabalho envolvendo vários ministérios para elaborarem um plano para facilitar a instalação deles no Brasil, para que possamos competir com países como Colômbia, Chile e México. Conforme o trecho que abre este artigo, houve um boom de instalação de centros de dados no Brasil nos últimos 10 anos, mas de acordo com a palestrante, poderíamos atrair mais empresas se estabelecermos o marco regulatório correto que garanta o lucro dos investidores.

    Foi então que um dos ouvintes levantou a mão e perguntou: “E qual será a vantagem para o Brasil?” Haverá geração de empregos? Ou será uma mera questão de instalar um monte de plantations de dados pelo país afora, assim como temos um monte de plantations de soja e de outras commodities?”  Colocação interessante, que talvez a palestrante não esperava ouvir, mas que a obrigou a abordar o lado negro dos centros de dados.

    Afinal, esses locais cheios de servidores, que precisam ser constantemente resfriados para poderem funcionar 24 horas por dia, não precisam de ninguém que os liguem e desliguem, pois rodam automaticamente. Portanto, não há necessidade de contratação de grandes contingentes de trabalhadores. Além disso, os equipamentos são todos importados, nada é produzido no Brasil e seu funcionamento exige grande quantidade de energia e de água. Estima-se que 1% da demanda global por energia seja proveniente de centros de dados de computação em nuvem. Considerando isso, será que o valor agregado produzido no Brasil é suficientemente grande para justificar o uso dos nossos recursos naturais? Apesar de considerados verdes, pois renováveis, como a energia elétrica e a água, sua exploração não deixa de ter impactos ambientais e de ser algo que não ficará disponível para a população. Finalmente, será que algum conhecimento será produzido no Brasil com a instalação de centros de dados? Ou só haverá o processamento mecânico aqui e os resultados serão compilados, analisados e transformados em aplicações tecnológicas na sede das empresas que instalam os centros de dados aqui?

    Em suma, a definição dada pelo ouvinte de “plantation de dados” pode ter colocado o dedo na ferida do Brasil, apontada por Cristovam Buarque em sua coluna na revista VEJA e mencionada na abertura deste artigo. Se multinacionais como Microsoft e Amazon estão instalando centros de dados no Brasil simplesmente por causa das nossas fontes de recursos naturais renováveis, isso é sintoma da nossa falta de cérebros que pudessem se debruçar sobre esses dados processados e criar soluções de AI para problemas reais a partir disso. E se não temos cérebros suficientes que atraiam empresas é porque não temos educação de qualidade que prepare os alunos para refletir e gerar produtos e serviços inovadores.

    Prezados leitores, enquanto a tarefa do momento é ter uma opinião sobre se Bolsonaro ou não tentou um golpe de estado em 8 de janeiro de 2023, mesmo que nenhum de nós tenha lido a denúncia da Procuradoria-Geral da República, nos gabinetes de Brasília preparam-se medidas para atrair empresas para espalharem plantations pelo Brasil, como se já não tivéssemos um número suficiente delas. De soja ou de dados, elas revelam o ponto fraco do Brasil em termos de formação de capital humano. Talvez quando o ciclo de julgamentos de celebridades políticas termine, possamos nos dedicar a resolver assuntos mais estratégicos para o nosso futuro.

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Rawls e a gatonet

[…] considerando a natureza social dos homens, o fato de que nossas potencialidades e inclinações ultrapassam em muito o que pode ser expresso em uma única vida, dependemos dos esforços conjuntos de outros não somente para obter os meios de atingir o bem-estar, mas para que nossos poderes latentes alcancem a fruição. […] O que une os esforços da sociedade em prol de uma união social é o reconhecimento mútuo e a aceitação dos princípios da justiça

Trecho retirado do livro “A Theory of Justice” do filósofo americano John Rawls (1921-2002)

 

Cálculos do prejuízo feitos por uma das maiores operadoras do país, que falou a VEJA sob a condição do anonimato, revelam que 270.000 domicílios em 68 bairros da região metropolitana são dados como “perdidos”, já que não se pode fornecer o serviço por lá – um quinto da atual base de clientes. “Fizemos investimentos, pagamos impostos para importar equipamentos, construímos a rede e ela foi tomada por bandidos”, indigna-se um alto executivo da empresa.

Trecho retirado do artigo “Concorrência desleal” publicado na edição de VEJA de 14 de março sobre a exploração ilegal da internet por quadrilhas do Rio de Janeiro

 

    Prezados leitores, depois de mais de sete anos, voltei a colocar os pés na Cidade Maravilhosa. Visitei o Museu Chácara do Céu, que abriga a coleção de arte de Raymundo Ottoni de Castro Maya (1894-1968). Ela inclui um quadro de Di Cavalcanti (1897-1976) e uma escultura de Bruno Giorgi (1905-1993), o que por si só já compensaram a visita à antiga residência de Castro Maya. É mesmo uma dádiva que algumas pessoas muito ricas, conscientes dos seus privilégios, tenham deixado um legado para as gerações futuras na forma de museus. Eu não nasci rica e nunca morarei em uma casa tão espetacular como a Chácara do Céu, rodeada de vegetação e com vista para a Baía de Guanabara. Mas pela benemerência de milionários ilustrados como Castro Maya posso desfrutar por algumas horas da beleza do lugar. Pretendo em próxima ida ao Rio de Janeiro visitar a casa onde morou Roberto Marinho (1904-2003), que também foi transformada em museu. Quem me deu essa dica cultural foi um taxista informado, cuja gentileza me tocou profundamente, pois depois de algumas palavras trocadas ele soube perceber minhas preferências em matéria de entretenimento.

    O Rio de Janeiro continua lindo, um poema a céu aberto, consubstanciado na conjunção do mar e da montanha que nos faz ascender a um mundo ideal de contemplação da beleza. Mas é um certo Rio de Janeiro, confinado às zonas turísticas, mais ou menos policiadas, para mim particularmente a Zona Sul do Leme ao Leblon, onde tudo pode ser acessado a pé: praia, restaurantes, cafés, livrarias e bares. Fui à Barra da Tijuca uma vez e não gostei do ambiente americanizado que reina por lá, onde o carro é necessário para cobrir as grandes distâncias entre os locais de interesse.  Há um outro Rio de Janeiro, fora do perímetro turístico, que reúne em si as mazelas que afligem o Brasil. Tomemos Brás de Pina, na Zona Norte da cidade.

    À parte a violência, o tráfico de drogas, a falta de bons empregos, boas escolas e bons postos médicos, Brás de Pina enfrenta um outro problema: a exploração ilegal dos serviços de internet por criminosos. Conforme a reportagem citada na abertura deste artigo, as operadoras de internet, como Claro e Oi, instalam a infraestrutura de cabos e os bandidos cortam os cabos. Quando os técnicos chegam para consertarem o cabeamento eles são expulsos e a operadora acaba perdendo os clientes, pois não consegue mais prestar o serviço. Quem no final substitui as grandes empresas são pequenas operadoras que na verdade trabalham para o Comando Vermelho ou a milícia local, mediante a contratação de técnicos das operadoras oficiais e utilizando a infraestrutura construída pelas empresas que atuam dentro da lei. O resultado são serviços mais caros e ruins, a que os moradores são obrigados a submeter-se pois quem os provê são dotados de fuzis para convencer os clientes recalcitrantes. As investigações da Polícia Civil do Rio de Janeiro apontam que o lucro da exploração da internet é tão grande quanto o obtido com o tráfico de drogas.

    Quem cobrirá os prejuízos das operadoras? Provavelmente seus clientes da Zona Sul ou da Barra da Tijuca, mas até que ponto será possível repassar a conta para o consumidor mais abastado? No longo prazo, se a cooptação de usuários pelos criminosos se espalhar por outros bairros do Rio de Janeiro e da Região Metropolitana, a única maneira de estancar as perdas será a de diminuir investimentos e ao final liquidar as operações e pronto, um bem público que permite, a ricos e pobres, trabalharem, fazerem negócios, estudarem, será extinto pela ação de parasitas, que se aproveitam do esforço alheio e da inação das autoridades para atuarem com total liberdade e desrespeito às leis.

    Nada mais distante do círculo virtuoso concebido por John Rawls para o funcionamento de uma sociedade bem organizada com base na noção de justiça como equidade. Para o filósofo político americano e professor da Universidade Harvard, cada indivíduo, como ato inaugural de sua participação na sociedade, escolhe aderir aos princípios de justiça pelos quais ele não fará aos outros aquilo que não gostaria que os outros fizessem para ele. O indivíduo faz essa escolha não só porque no frigir dos ovos os seus interesses pessoais serão mais bem satisfeitos se ele aderir às regras.

    Conforme o trecho que abre este artigo, sendo um homem um ser social, ele só realiza suas plenas potencialidades no seio da sociedade, usufruindo daquilo que foi construído pelas gerações passadas e pelas gerações atuais. Dessa forma, aderir aos princípios da justiça como opção de vida não só viabiliza a concretização dos projetos individuais, mas permite que o indivíduo participe do esforço coletivo a que se dá o nome de sociedade, não só dando sua contribuição como aproveitando o que a união comum tem a oferecer a cada um dos seus participantes, o que leva todos a terem um núcleo básico de propósitos conjuntos.

    Em suma, uma andorinha não faz o verão, mas todas voando em sincronia, chegam juntas ao destino pretendido. É algo que uma pessoa com bom senso sabe desde sempre, mas se é preciso que um filósofo escreva um livro de mais de 500 páginas para delinear os contornos de uma sociedade bem organizada, é porque é difícil na prática colocar para funcionar esses princípios liberais em que todos se beneficiam de alguma maneira de sua participação no empreendimento coletivo, independentemente de sua classe social, gênero, nível de conhecimento ou de inteligência.

    Em um país como o Brasil, em que sempre houve grandes disparidades de renda, a confiança mútua é baixa, pois os que têm algo têm medo da inveja e do rancor dos que não têm nada, e os que não têm nada têm medo do que os poderosos podem fazer contra ele. Em tal ambiente, fica difícil o indivíduo aceitar o convite, proposto no esquema de John Rawls, de aderir de maneira radical aos princípios de justiça, pois ele sempre desconfiará que o outro não o fará e se ele o fizer será um otário, de cuja boa fé o outro se aproveitará.

    Prezados leitores, a exploração ilegal da internet por criminosos no Rio de Janeiro é uma manifestação da doença que acomete o Brasil, isto é, nossa incapacidade histórica de aderirmos a um projeto comum pelo qual o compartilhamento de bens públicos beneficie todos ao mesmo tempo. Pode ser serviços de conexão e utilidades públicas em geral ou pode ser segurança física, segurança jurídica, preferimos enquanto conjunto de pessoas vivendo no mesmo território cuidarmos do nosso pedaço para que ninguém o tome de nós. E em assim fazendo tornamos esse pedacinho individual cada vez mais ameaçado pela violência, pela corrupção e pela incompetência. Talvez um dia façamos uma outra opção, quem sabe? Enquanto isso, cada um no seu quadrado, e alguns com sua gatonet.

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Viver para quê?

Que humilhação quando alguém colocou-se perto de mim e ouviu uma flauta à distância e eu não ouvi nada… Tias incidentes me levaram às portas do desespero; um pouco mais e eu teria dado cabo da minha vida – somente a arte me impediu de fazê-lo, ah, parecia impossível deixar o mundo até que eu tivesse produzido tudo a que eu me sentia chamado a produzir… foi a virtude que me sustentou na minha aflição, a ela e a minha arte devo o fato de que eu não tenha me suicidado.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981), citando uma carta escrita por Ludwig von Beethoven (1770-1827) em 6 de outubro de 1802 a seus irmãos Karl e Nikolaus, que ficou conhecida pelo nome de Testamento de Heiligenstadt

um italianinho pálido, esbelto e franzino, mas com opiniões singularmente audaciosas

Descrição de Napoleão Bonaparte (1769-1821) feita por Boissy d’Anglas (1756-1826), escritor, advogado e político francês durante a Revolução em junho de 1795

    Prezados leitores, imaginem um sujeito de 1,65, bexiguento, pobre, filho e neto de alcoólatras e escuro como um mouro, como se dizia à época. Este indivíduo pouco dotado começa a aprender música impelido pelo pai, tenor no coral do Príncipe-Eleitor de Colônia e que pretendia fazer do filho um prodígio que lhe permitisse ganhar uns trocados, assim como o pai de Michael Jackson fez com ele. O menino não era muito chegado às lições, mas o pai lhe aplicava umas bordoadas que o compeliam a conformar-se em aprender e ele acabou aprendendo e adquirindo um gosto por aquilo que havia sido forçado a fazer. Esse menino é Beethoven e é impossível que alguém com idade ao redor de 50 anos não tenha assistido pela TV à Queda do Muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989 e à unificação da Alemanha em 3 de outubro de 1990. Sendo assim, mesmo sendo roqueiro ou roqueira o cinquentão ou cinquentona terá ouvido a Ode à Alegria, a Nona Sinfonia do menino nascido em Bonn, tocada no Portão de Brandemburgo.

    Além de todos os seus problemas vindos da sua herança genética, que o fazia chegado a uma bebida, e da sua modesta condição social, Beethoven padeceu de outro mal, este muito mais trágico, porque insuperável: a surdez, provavelmente resultado dos efeitos da sífilis em seu corpo. Conforme o trecho que abre este artigo, ao descobrir que está ficando surdo, o que ocorre por volta de 1801, Beethoven, que já era um músico profissional que vivia do seu trabalho, desespera-se e escreve seu testamento espiritual e uma apologia da sua vida. Ele não sabia o que seria dele, se conseguiria ainda compor as músicas que fervilhavam na sua mente ou se a surdez seria um impeditivo definitivo. Se assim o fosse, o Testamento de Heiligenstadt revelaria, após a morte do músico, suas melhores intenções, que eram a de continuar tentando, apegando-se ao seu ofício para não cair no niilismo e na tentação do suicídio. E assim Beethoven o fez, tanto que os estudiosos de sua obra consideram que o período de 1803 a 1816 é aquele de maior criatividade, em que ele mudou o sexo das sonatas e das sinfonias, tirando-lhes o sentimento e a delicadeza femininas e dando-lhes a assertividade e a vontade masculinas. Portanto, Beethoven compôs as obras que o imortalizaram – entre as quais a Sinfonia Eroica, a Quinta Sinfonia e a Sinfonia Pastoral, além do Concerto para Piano nº 5 – quando já estava surdo e não conseguia ouvir suas melodias com seus ouvidos físicos, apenas imaginá-las na sua mente e transpor a criação para o papel, para que alguém pudesse tocá-las e apreciar sua beleza.

    Sob a ótica do que ocorreu depois com Beethoven, o Testamento de Heiligenstadt acabou servindo como um roteiro de vida, a enunciação de princípios que norteariam o modo como o músico iria encarar o grande infortúnio da surdez. Não desistir jamais da arte como antídoto contra a morte e como legado que Beethoven deixaria para a posteridade, que poderia usufruir das suas criações como ele jamais poderia fazê-lo. Certo de que tinha algo a oferecer à humanidade, ele perseverou e viveu para atingir seu objetivo de criar. Suas criações embalaram acontecimentos seminais na história do país onde nasceu mais de 150 anos depois da sua morte.

    Há um outro personagem nascido no século XVIII que adentrou o século XIX e que também pensou seriamente em suicídio, pelo menos de acordo com o que ele conta em suas memórias. Este personagem é o arrivista da Córsega, Napoleão Bonaparte. Em dezembro de 1793, Napoleão, já oficial do Exército Francês, destacou-se na captura de Toulon e foi agraciado com a a patente de brigadeiro-general por Robespierre (1758-1794), então chefe do governo revolucionário. Um grande feito para um jovem de 24 anos chegar a general, mas o fato de a promoção ter sido concedida por um homem que seria apeado do poder e guilhotinado fez Napoleão ser considerado um partidário de Robespierre e ser preso em Antibes. Solto depois de 15 dias, Napoleão é aposentado compulsoriamente com soldos reduzidos.

    O que fazer se ele não podia dedicar-se àquilo para o que havia se esforçado e estudado, tendo caído em desgraça aos olhos do novo governo francês? O italianinho de 1,67 descrito por Boissy d’Anglas, conforme o trecho que abre este artigo, pensou em ir para a Turquia e ajudar o sultão a reorganizar seu exército, o que lhe permitiria talvez conquistar algum reino para si que pudesse governar. Na prática, a falta de perspectivas em seu país de adoção, a França, o fez pensar em suicidar-se ao caminhar pelas margens do rio Sena, na primavera de 1795.

    Napoleão foi salvo não por um testamento motivacional como Beethoven, mas pelos caprichos da história. Paul Barras (1755-1829), lembrando dos feitos de Napoleão em Toulon, o chamou para organizar a defesa da Convenção, a Assembleia Revolucionária que governou o país de 1792 a 1795. Cercada em 5 de outubro de 1795 por monarquistas e outros, a Convenção precisava de alguém que comandasse a artilharia e Napoleão o fez de maneira bem-sucedida. Daí ser nomeado comandante do exército francês na Itália passarem-se menos de cinco meses (2 de março de 1796). Começava então a carreira militar e política daquele que viria a ser cônsul e imperador e que em 20 anos lutou mais de 80 batalhas e perdeu 10 delas.

    Prezados leitores, se trago esses dois exemplos de grandes homens que passaram por crises existenciais não é para fazê-los crer que podemos ser gênios da música, ou da guerra ou da política, bastando termos um roteiro de passos a seguir ou sermos agraciados com um golpe de sorte. Em tempos de mídias sociais em que vemos diariamente fotos de pessoas felizes, realizadas, bonitas, ricas e inteligentes a promoverem seus maravilhosos feitos, acabamos nos comparando a todo o mundo, isto é, ao mundo todo, e isso pode ser fonte de insatisfação com nossa própria mediocridade. A pergunta que se põe no século XIX ou no século XXI é a mesma: viver para quê? Beethoven viveu para a arte, Napoleão para o poder e a glória. Nós pobres mortais precisamos descobrir um caminho que nos motive a continuar andando, ao menos para apreciar a paisagem se não for para realizar grandes coisas. Cada um no seu ritmo. Afinal, a vida o que é? É a batida de um coração, como diria Gonzaguinha, e enquanto esse coração pulsar a vida sempre poderá ser bela.

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A virtude em todas as coisas

Confúcio acreditava que o bem-estar de um país dependia do cultivo da moralidade da sua população, a começar da liderança do país. Ele acreditava que os indivíduos poderiam começar a cultivar o sentido abrangente da virtude por meio da ren (misericórdia) e que o passo mais básico para cultivar a ren era a devoção filial – principalmente a devoção aos pais e aos antepassados.

Trecho retirado do artigo “Making Sense of China’s Meteoric Rise”, publicado por Hua Bin e Mike Whitney em 3 de março

Ele considerava que os clérigos deveriam cuidar da sua própria atividade, que era a de pregar virtudes cristãs, não reformas políticas; as virtudes tocam o cerne da matéria, que são as tendências malévolas da natureza humana; as reformas mudam somente as formas superficiais do mal, porque elas não provocam nenhuma mudança na natureza do homem.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as ideias do filósofo irlandês Edmund Burke (1729-1797)

 

O homem superior preocupa-se com a virtude; o homem inferior preocupa-se com a terra

Frase de Confúcio, filósofo chinês (551 a.C.-479 a.C.)

 

    Prezados leitores, tenho um sentimento ambíguo em relação ao Carnaval. Tenho inveja daqueles que podem folgar durante cinco dias seguidos e lembro dos bons tempos em que eu também podia e aproveitava para viajar pelo Brasil. Embalada pela alegria dominante, canto músicas de carnaval que acabei aprendendo de cor ao longo da vida, como “É Hoje”, de Caetano Veloso ou algum samba-enredo que ouvi nos tempos em que meu pai assistia a todos os desfiles do Rio de Janeiro pela TV. Ao mesmo tempo, esses dias de Saturnália me mostram um retrato pouco lisonjeiro de nós brasileiros.

    As pessoas fazem xixi na rua, jogam latas vazias e bitucas de cigarro no chão, destroem lixeiras, cantam no ônibus obrigando os outros passageiros a conviver com barulho em um ambiente que não é de entretenimento. É certo que o carnaval movimenta a economia, dando trabalho temporário a camelôs a postos para vender bebidas e salgadinhos aos foliões que sob o sol escaldante destes tempos de aquecimento nos trópicos estão sempre com sede e com fome. Pergunto-me se o que é gerado em receita de vendas compensa o estrago causado na infraestrutura urbana, em termos de equipamentos públicos estragados e a quantidade de lixo que é produzida.

    Esses foliões que impõem sua presença na cidade dançando, cantando, consumindo e descartando os subprodutos da folia fazem questão de mandar seus recados. Houve muitos que se fantasiaram de Fernanda Torres para homenagear nossa candidata ao Oscar de melhor atriz pelo filme Ainda Estou Aqui, como contraponto ao ex-presidente Jair Bolsonaro, o defensor mais conspícuo da ditadura militar (1964-1985) que torturou e matou o marido da personagem vivida por Fernanda, Eunice Paiva. A mensagem dos foliões ao incorporarem a persona da atriz carioca fica ainda mais enfática considerando que de acordo com a denúncia do Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, o fã do coronel e chefe de centros de tortura Carlos Brilhante Ustra (1932-2015) está sendo acusado de ter tentado dar um golpe de estado depois da sua derrota nas últimas eleições presidenciais.

    Temos então que esses mesmos foliões que emporcalham a cidade e dão trabalho aos garis e demais funcionários da prefeitura são os mesmos que defendem o filme que denuncia as violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado brasileiro. Alguns perguntarão: Qual o problema disso? Afinal não se pode entrar no transe da Saturnália anual e ao mesmo tempo defender as causas justas como a democracia, os direitos humanos e o meio ambiente? Dois expoentes do pensamento conservador, tanto no Ocidente quanto no Oriente diriam que há um grave problema nessa atitude.

    Para Edmund Burke, autor do clássico do pensamento conservador “Reflexões sobre a Revolução na França”, nenhuma revolução política, que implemente qualquer novo regime que seja – a democracia, a ditadura das massas ou a ditadura de um condottiere – ataca o problema central das sociedades, que é a má índole do ser humano. Em qualquer tipo de organização social a cobiça, a inveja, a paixão estarão sempre presentes e conforme o trecho que abre este artigo o melhor que pode ser feito é cultivar as virtudes cristãs para que as pessoas se comportem melhor, isto é, controlem melhor o lado negro da natureza humana. Para Burke esse trabalho de educação nas virtudes deveria ser feito pela Igreja, sem que seus membros se preocupassem em mudar as instituições políticas para tentar resolver as injustiças sociais.

    À mesma conclusão sobre a futilidade de transformações coletivas, sem que houvesse transformações individuais, chegou o filósofo chinês Confúcio muito antes de Burke e de uma maneira que teve um impacto profundo em seu país. O objetivo do homem deve ser praticar a virtude, começando pelo respeito aos pais, e incluindo a reciprocidade, a lealdade, a sabedoria, a coragem, a confiabilidade e a habilidade fruto da educação. A sociedade será próspera, harmônica e pacífica se cada indivíduo procurar aprimorar-se, pois se todas as pessoas tiverem um comportamento adequado certamente isso dará frutos coletivos. Para Confúcio, a principal qualidade de uma pessoa em posição de liderança deve ser a de fazer a coisa certa. Se o líder faz a coisa certa ele estabelece um exemplo que é seguido por todos.

    Para Hua Bin, o autor mencionado no trecho que abre este artigo, o segredo do sucesso da China está na filosofia confuciana. O país que em 1978 tinha um PIB per capita de US$ 225 hoje tem um PIB per capita de US$ 13.445, o que fez com que 800 milhões de chineses deixassem de ser pobres. De acordo com o autor, esse feito, inédito na história mundial, foi conseguido porque a liderança do país não é nem socialista, nem comunista, nem marxista, nem autoritária e nem democrática, ela é confuciana, isto é, cultiva as virtudes que fazem o homem aprimorar-se, num sistema meritocrático em que os melhores são escolhidos para dirigir as organizações. Sob essa ótica, falar que a China é a nação que está na vanguarda das inovações do século XXI porque ela adotou o capitalismo de mercado ou uma economia mista planejada é passar ao largo do cerne da questão, qual seja: a governança do país é boa – há trens que funcionam, há áreas verdes nas cidades, há serviços de saúde que cabem no bolso dos cidadãos, há educação que ensina a ler, a escrever e a pensar, há oportunidades de realização individual – porque os líderes do país são escolhidos entre os melhores, entre aqueles que melhor souberam cultivar a receita de Confúcio do homem virtuoso e o seu exemplo se espalha na sociedade.

    Prezados leitores, Confúcio, defensor da ordem e da harmonia frente ao caos em que se encontrava a China em sua época, é para os chineses e Burke feroz defensor da monarquia, é para os britânicos. Receitas estrangeiras nunca podem ser aplicadas integralmente em locais com cultura e tradições históricas diferentes. Apesar disso, nós brasileiros nos ajudaríamos muito se antes de criticarmos o comportamento dos nossos governantes fizéssemos um autoexame diário e nos perguntássemos o que podemos mudar em nossa vida para contribuirmos para o bom funcionamento da sociedade. Afinal, como ensinaram Burke e Confúcio, a virtude no andar de baixo acaba espalhando-se para o andar de cima e vice-versa, eis o segredo da felicidade das nações.

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A IA e os maratonistas do século XXI

O futuro da IA não será conquistado se nos preocuparmos exageradamente com a segurança, será conquistado construindo a IA.

Trecho do discurso do vice-presidente dos Estados Unidos, J. D. Vance proferido em 11 de fevereiro na cúpula sobre Inteligência Artificial realizada em Paris

Ele alertava sobre deixar que o progresso da ciência, que simplesmente aprimora nossas ferramentas, ultrapassasse o desenvolvimento da literatura e da filosofia, que considera nossos objetivos, de forma que o exercício irrestrito da faculdade do cálculo tinha enriquecido ainda mais a minoria inteligente, e havia aumentado a concentração de riqueza e de poder.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as ideias do poeta romântico inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822)

Muitas empresas têm reportado que enfrentam um problema que já compromete suas atividades e investimentos: está difícil contratar trabalhadores, e o motivo principal não é o número mais baixo de desempregados, como o senso comum poderia supor. A situação é fruto de uma desregulação mais grave do mercado de trabalho. “A escassez é generalizada”, diz Anaely Machado, economista do Observatório Nacional da Indústria. “A falta de pessoal vai desde as funções mias simples até as mais qualificadas.”

Trecho do artigo O apagão de mão de obra, publicado na revista VEJA de 21 de fevereiro

A vida não é uma corrida de cem metros, que termina em segundos. A vida é uma maratona cada vez mais longa. E maratona precisa de perseverança, determinação, resiliência e sobretudo de aprendizado. O País só vai dar certo com educação da infância à velhice”.

Trecho de palestra dada pelo geriatra Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil em 14 de outubro de 2024

    Prezados leitores, o mundo dos sprinters ficou para trás, chegou a era dos maratonistas. Somos todos maratonistas, isto é, pessoas que terão muito mais de meio século de vida e não tendo o medo de morrer que acometia nossos antepassados, que corriam contra o tempo e tentavam fazer tudo o que podiam antes que “A Ceifadora” os pegassem, precisam aprender o que fazer com uma vida tão longa. O desafio dos maratonistas é cadenciar o ritmo, tornar o esforço físico suportável ao longo do tempo de corrida, não acelerar demais para não cair de maduro no meio da pista e ao mesmo tempo não ser muito lentos que nos faça sermos os últimos a cruzar a linha de chegada. Qual o segredo do equilíbrio, da sintonia fina entre ritmo e regularidade?

    Para Alexandre Kalache, citado na abertura deste artigo, o segredo é cultivar bons hábitos de alimentação e exercícios e aprender continuamente, fazer da vida uma eterna sala de aula para que possamos nos adaptar às diferentes fases da vida e aproveitar o que cada uma tem de bom. E observando o que está acontecendo no Brasil neste momento sua ênfase no aprendizado parece justificar-se.

    A taxa de desocupação no país está em 6,2%, a menor desde 2012, mas ela esconde um grave problema: a grande defasagem entre a mão de obra de que as empresas precisam e aquilo que as pessoas oferecem, de forma que as vagas abertas não são preenchidas pelo fato de que os que estão à busca de um emprego não têm as qualificações necessárias. De forma que se os trabalhadores estivessem investindo no aprendizado contínuo, como preconiza Kalache, a taxa de desemprego seria muito menor, pois 60% das empresas hoje no Brasil enfrentam dificuldades para preencher vagas, de acordo com o artigo de VEJA, tanto que deixam de investir e de expandir a produção por causa desse apagão.

    Que maravilha então para os maratonistas! Com empresas ávidas por achar gente para trabalhar e assim poder fazer dinheiro, basta adquirirmos as qualificações necessárias e conseguiremos emprego em todas as etapas da vida. Poderemos assim seguir tranquilamente na corrida, mantendo o passo firme e constante, hidratados e alimentados, sob o sol tropical, cada vez mais escaldante, sem medo de entrarmos em colapso no meio do caminho. Será? Como diria o poeta, tinha uma pedra no meio do caminho.

    Essa pedra se chama inteligência artificial. Ela reconhece padrões, resume e traduz textos, escreve seguindo o estilo de determinado autor, colhe informações e apresenta conclusões. Foi-se o tempo em que os robôs eram colocados no chão de fábrica ou no fundo do mar para realizar tarefas perigosas ou cansativas, que poderiam matar ou injuriar o homem. Hoje, o Grok e o ChatGPT estão na tela do seu celular, respondendo em poucos segundos a uma pergunta sobre sintomas médicos, elaborando uma petição com base nos dados que o usuário insere e por aí vai. O que será daqueles profissionais que antes realizavam tudo isso por si mesmos? O que será dos tradutores que vertem de uma língua para a outra, dos advogados que produzem uma argumentação a ser apresentada ao juiz, do médico que faz diagnósticos com base no que o paciente lhe relata?

    Eles podem se transformar em revisores do que a IA entrega, retocar o produto final, corrigir erros, melhorar o texto, checar o diagnóstico fazendo o exame físico do paciente. Mas serão necessários tantos revisores quanto o número de pessoas que eram responsáveis pela elaboração do produto ou serviço em todas as suas etapas? Atualmente nas empresas, a IA é apresentada em uma bandeja dourada com laço de fita vermelha, como uma nova ferramenta que ajudará os funcionários a serem mais produtivos, a entregarem com qualidade maior, e devemos estar todos entusiasmados com essa inovação tecnológica, pois como cantava Elis Regina, o novo sempre vem. Melhor aceitá-lo e fazer as devidas adaptações.

    É o que pensa também o vice-presidente dos Estados Unidos, J. D. Vance, conforme ele explicou em sua palestra sobre IA em 11 de fevereiro em Paris. Não vale a pena preocupar-se com a segurança da IA e muito menos tentar controlá-la, impondo normas regulatórias. Isso só inibirá a inovação e o investimento e a IA tem o potencial de causar uma disrupção na economia, uma destruição criativa de funções que pode levar à Sociedade 5.0 ou à sociedade super inteligente, em que todos os aspectos da vida serão organizados por meio de dados, em que a ação humana ficará limitada ao fornecimento de dados às máquinas, que serão capazes de coletá-los, processá-los e transformá-los em produtos e serviços. Em suma, a IA deve ser uma cria do capitalismo, o melhor sistema de produção de riquezas que o mundo já conheceu.

    Sob essa perspectiva, coibir o desenvolvimento da IA por meio de proibições e restrições é privarmo-nos da oportunidade de crescimento da economia por meio do investimento em um novo mercado que com certeza criará novas atividades e portanto, novos empregos. Mas será que se a IA tiver rédea solta ela não acabará desenvolvendo-se mais rapidamente do que a capacidade dos trabalhadores de atualizarem suas qualificações?

    No Brasil ocorre o apagão da mão de obra porque a educação no geral é ruim demais para preparar as pessoas para um mercado que mal chegou à era digital. O que ocorrerá daqui a alguns anos, quando tivermos importado ferramentas de IA dos Estados Unidos (ChatGPT) ou da China (DeepSeek), por exemplo? Nossa educação, já retardatária para a era do uso disseminado de computadores, estará a anos-luz da era da Sociedade 5.0, em que o emprego estará disponível somente para aqueles que saibam desenvolver ferramentas de IA, pois os outros terão sido substituídos pelas máquinas.

    A calamidade vislumbrada pelo poeta romântico inglês Shelley pode estar à nossa porta, conforme o trecho que abre este artigo: a ciência e a tecnologia desenvolvidas exponencialmente para o benefício de uns poucos e o desespero da maioria. Shelley, morto aos 30 anos no mar, criticava o fato de nem católicos nem protestantes buscarem exercer a compaixão pregada por Cristo nas suas relações com os mais pobres. Afinal, a Primeira Revolução Industrial foi executada às custas dos operários das fábricas, que trabalhavam muito mais de 8 horas por dia em condições insalubres, porque esse era o modo eficiente de produzir que gerava lucro e permitia reinvestir. Pode ser que a Sociedade 5.0 seja erigida sobre a pilha de trabalhadores tornados obsoletos cujo futuro na vida será o de receber uma renda mínima mensal para subsistência em um mundo sem emprego.

    Prezados leitores, nesses tempos de maratona que estamos vivendo no século XXI, a IA pode acabar exercendo o papel daquele espectador que se coloca na rua à espera do corredor e que ao tentar agarrá-lo, destrói suas chances de vencer tirando-lhe o foco e quebrando-lhe o ritmo. Só nos resta torcer para que as mentes brilhantes dos calculistas que desenvolverão a IA na sua máxima potencialidade reflitam sobre as consequências que ela terá para os maratonistas, que correm o risco de se verem condenados a viver décadas sem perspectiva nenhuma.

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