Guerra e Paz

A verdade é raramente simples; normalmente ela tem uma mão direita e uma esquerda, e anda com os dois pés. Alguma vez houve, desde Ashoka, uma grande guerra em que um país admitisse que a causa do inimigo era mais justa? É parte da natureza do cidadão médio fazer do seu Deus um particeps criminis nas guerras do seu país.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

Em que pese cinco minutos antes o Príncipe Andrei tivesse sido capaz de dizer algumas palavras aos soldados que o estavam carregando, agora com os olhos fixos em Napoleão, ele permaneceu em silêncio … Tão insignificante parecia naquele momento todos os interesses que prendiam a atenção de Napoleão tão mesquinho parecia seu próprio herói, com sua vaidade insignificante e sua alegria na vitória, em comparação com o céu sublime, equânime e gentil que ele havia visto e entendido, que ele não conseguiu responder a ele. Tudo parecia tão fútil e reles em comparação com a sequência de pensamentos austeros e solenes que a fraqueza pela perda de sangue, o sofrimento e a proximidade da morte despertaram nele. Olhando nos olhos de Napoleão, o Príncipe Andrei refletiu sobre a insignificância da grandeza, a falta de importância da vida que ninguém podia entender, e a desimportância ainda maior da morte, cujo significado nenhum ser vivente podia entender ou explicar.

Trecho retirado do livro “Guerra e Paz” do escritor russo Liev Tolstoy (1828-1910)

 

A situação é calamitosa para a Ucrânia – Ele pode obter a Paz ou pode lutar por mais três anos antes de perder todo o País. Eu não tenho nada a ver com a Rússia, mas tenho muito a ver em querer salvar, em média, 5.000 soldados russos e ucranianos por mês que estão morrendo por nenhum motivo.

Trecho de twitter publicado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre a tratativas para um acordo de paz que coloque um fim à Guerra da Ucrânia

    Prezados leitores, algum de vocês já teve uma experiência epifânica? Um momento vivido de maneira tão intensa que deixou uma impressão na mente e levou à reflexão profunda e à descoberta de uma verdade fundamental? Escritores fazem uso desses momentos de revelação em suas narrativas para passarem sua mensagem da maneira mais eficaz possível: não explicando nem tecendo argumentos, mas simplesmente mostrando na prática. O trecho que abre este artigo ilustra essa técnica literária.

    Andrei Bolkonski, oficial do Exército Russo, jaz ferido no campo da Batalha de Austerlitz, travada em 2 de dezembro de 1805 na Morávia, entre o exército francês, comandado por Napoleão Bonaparte (1769-1821), e uma coalizão entre a Áustria e a Rússia, batalha da qual o já imperador Napoleão I sai vitorioso. Esvaindo-se em sangue, já em estado de alucinação, Bolkonski olha para o céu e em contemplando o azul do firmamento chega a uma constatação que cala profundamente em sua alma. A vida humana, o sofrimento, a glória do poder, nada disso se compara à beleza e ao mistério da criação. Não sabemos por que estamos aqui, como aqui chegamos e para onde iremos, e jamais iremos saber. Só nos resta atermo-nos ao fundamental e deixarmos o que é insignificante de lado: o fundamental é desfrutar das coisas simples da vida e deixar de lado a busca pelo poder, pelas honras e pelas realizações.

    Não revelarei aqui que caminhos o momento epifânico de Andrei o leva a percorrer depois da experiência de quase-morte em Austerlitz. Para saberem leiam as quase 1.400 páginas do livro ou assistam à minissérie produzida pela BBC, em 2016. O que importa para os propósitos deste artigo é que o autor de Guerra e Paz, ao descrever o período em que a Rússia participou das Guerras Napoleônicas (1803-1815), quer mostrar, através do percurso existencial de seu personagem, a futilidade da guerra e propor a paz. Bolkonski, que antes de Austerlitz admirara o homem que havia por seu próprio esforço conquistado um reino para si, passa a desprezar sua vaidade e sua empáfia. Afinal, o poder e a glória de Napoleão foram conquistados à custa de milhares de mortos em relação ao quais o pequeno corso sentia indiferença, como mostra a cena do seu passeio a cavalo em meio aos moribundos e ao já defuntos. Para o pacifista Tolstoy este era um preço alto demais a ser pago pela sociedade para que um homem genial como Napoleão pudesse dar vazão às suas capacidades intelectuais.

    Este sacrifício de vidas em vão também é rechaçado, em pleno século XXI, por Donald Trump. Na semana passada eu o abordei neste meu humilde espaço, tecendo a hipótese de que ele talvez cumpra o papel que o filósofo Friedrich Hegel dava a certos personagens históricos de serem a expressão da força dos eventos e das circunstâncias: de estarem de tal modo em sintonia com o espírito do tempo que se tornam uma força que dá unidade ao que estava disperso, dando significado ao que era informe e caótico e que por meio deles se cristaliza e consolida. Nesse sentido o Orange Man poderia ser a expressão do fim da globalização e do livre trânsito de mercadorias, pessoas e capitais entre os países.

    Por outro lado, talvez o gênio hegeliano de Trump esteja alhures. As idas e vindas em relação às tarifas sobre os produtos fabricados na China e o estabelecimento de exceção às alíquotas de 144% em relação a produtos eletrônicos, deixam claro que Trump e sua equipe econômica tiveram que improvisar e recuar parcialmente porque a reação do mercado foi preocupante para os americanos. Houve uma venda acentuada de títulos do Tesouro e com isso uma disparada dos juros. Considerando que o déficit federal dos Estados Unidos foi de 1,8 trilhões de dólares em 2024, qualquer alta nos juros pode dificultar a rolagem da dívida, tornando-a mais cara.

    Quem vendeu os T-bonds? Talvez o governo da China, que atualmente possui 782 bilhões de dólares investidos nesses títulos? A pressão surtiu efeito e Trump revogou parte do tarifaço. Mesmo que o governo americano acabe por seguir em frente com ele, é incerto se haverá resultado palpável em termos de reindustrialização do país. Os produtos made in China participam de tantas cadeias de suprimentos que com certeza muitas indústrias nos Estados Unidos se ressentirão da falta de insumos para a fabricação de seus produtos. Foram décadas e décadas em que o Império do Meio investiu em infraestrutura física e em capital humano de forma a se tornarem produtivos e competitivos. Não será um tarifaço de Trump que reverterá essa situação, outras frentes terão que ser abertas para melhorar as condições econômicas dos Estados Unidos e talvez o Orange Man não tenha o tempo para trabalhar nelas.

    Desse modo, se for para Trump expressar o espírito da época talvez seja pela busca da paz. Como ele deixa claro no twitter citado na abertura deste artigo, o Presidente dos Estados Unidos quer colocar um basta à Guerra na Ucrânia, que se arrasta desde fevereiro de 2022. Não importa saber quem tem razão: se são os russos que dizem querer acabar com o nazismo que floresce na Ucrânia e defender minorias étnicas russas que são oprimidas no país ou os ucranianos, que reclamam da invasão do seu território e da violação da sua soberania.

    Conforme Will Durant explica na última parte do seu livro “The Age of Napoleon”, ao fazer um balanço da carreira do corso genial e infernal, a verdade é complexa. As partes beligerantes tendem a apresentar as razões do seu comportamento sob a luz mais favorável possível e raramente reconhecem alguma validade na argumentação contrária. O que fazer? Continuar lutando até que a força das armas dê razão a um ou a outro? Ou deixar as justificativas de parte a parte de lado e enfocar o término das hostilidades para que vidas sejam poupadas?

    O Orange Man parece inclinar-se pela busca da paz sem muitas perguntas sobre quem é inocente e quem é culpado pela guerra, pois qualquer fenômeno histórico comporta inúmeros ângulos de visão. Se ele conseguir que as hostilidades cessem, os russos e ucranianos que estão no campo de batalha agradecerão. Eles podem não contemplar o céu e filosofar como Andrei Bolkonski fez em 1805, mas poderão voltar para sua família e a uma vida normal sem sons de artilharia e de bombas caindo ou o zumbido de drones voando no espaço.

    Prezados leitores, oxalá Trump, que parece não entender muito de economia, possa ser o gênio da paz neste século XXI.

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O Orange Man e o Zeitgeist

Se as operações da história são uma expressão da Razão – das leis inerentes à natureza das coisas – deve haver algum método tanto no processo quanto no resultado. […] Há, então um desígnio geral ou total por trás do curso da história? Não, se isso significa um poder supremo consciente guiando todas as causas e efeitos em direção a um objetivo; sim, na medida em que o amplo fluxo dos eventos, à medida que uma civilização avança, é movido pelo total do Geist ou Mente para levar o homem cada vez mais perto da sua meta, que é a liberdade por meio da razão.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o pensamento do filósofo alemão G. W. F. Hegel (1770-1831)

Para mim, eu busquei sempre a liberdade mais do que o poder, e o poder somente porque em parte ele favorecia a liberdade. O que me interessava não era uma filosofia do homem livre (todos aqueles que tentam fazer isso me aborrecem), mas uma técnica: eu queria achar a dobradiça à qual nossa vontade se articula ao destino, onde a disciplina é um acessório da natureza, e não um estorvo para ela.

Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76 d.C.-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121 d.C.-180 d.C.), que seria imperador

    Prezados leitores, uma das minhas últimas manifestações de energia produtiva deu-se há mais de dez anos, quando escrevi meu trabalho de conclusão de curso, o famigerado TCC, no último ano da faculdade. Para conseguir fazê-lo eu me obriguei a um ritual: sentar-me na cadeira no domingo à tarde, acontecesse o que acontecesse, e escrever ao menos um parágrafo, abdicando de assistir ao Domingão do Faustão. Fazendo isso durante seis meses consegui completar a tarefa e apresentar minha opus magna ao meu orientador, que era o meu professor de Direito Internacional e ao seu convidado, outro professor da mesma área. Meu tema foram duas disputas em que o Brasil se envolveu na Organização Mundial do Comércio, uma a respeito do algodão e outra a respeito dos aviões da Embraer. Para discuti-las tracei um painel histórico das origens da OMC e ao final teci algumas considerações sobre o tal do livre comércio, que de livre tem muito pouco, dadas as intervenções governamentais na taxa de câmbio, nos tributos e nos incentivos dados às empresas para se tornarem grandes exportadoras.

    Minha humilde obra acadêmica me veio à cabeça com esta bomba atômica solta pelo presidente americano Donald Trump, que depois de retirar os Estados Unidos da OMC logou quando tomou posse em 20 de janeiro, agora vem impor tarifas alfandegárias contra todos os países do mundo, jogando no lixo os princípios e regras do comércio internacional. Será este o prenúncio do fim da livre circulação de mercadorias, serviços e capitais que foi a tônica da ordem mundial vigente desde o fim da Segunda Guerra Mundial e se acelerou ainda mais depois do fim da Guerra Fria? Será que em causando choque e surpresa, Trump é o gênio da concepção hegeliana? Para tentar responder a essa pergunta, devo explicar a filosofia da história de Friedrich Hegel.

    Conforme o trecho que abre este artigo, o curso da história é um rio caudaloso que segue uma determinada rota e corre para um determinado ponto. Essa rota são as leis inerentes à natureza das coisas, a que Hegel dá o nome de Razão, e esse ponto de chegada é o ápice da liberdade por meio da Razão. O gênio, para Hegel, é aquele homem que dá expressão a esse espírito que anima os acontecimentos históricos e que faz com que eles tendam a um determinado fim. Nesse sentido, o gênio é o homem que percebe de maneira consciente ou intuitiva para onde o vento sopra e, navegando nas águas turbulentas da história, permite que o espírito que emana do fluxo dos acontecimentos possa revelar-se ao final quando o caminho é completado e o objetivo cumprido. Hegel dá como exemplo de gênio Napoleão, que intuiu as necessidades do seu tempo e foi o agente da necessidade da Europa de leis consistentes e válidas para todos, que substituíssem a miríade de regras impostas em cada local da Europa de acordo com o senhor feudal de plantão.

    Sob essa perspectiva, a tarefa do gênio não é trazer a felicidade, mas estando em conexão perfeita com o espírito do tempo, fazer com que haja o movimento dialético da confrontação da tese pela antítese e a criação da síntese, que em última análise é o fim da história. O gênio faz com que o progresso ocorra porque, longe de lutar contra o fluxo dos acontecimentos ele ajuda a acelerá-los, cristalizando tendências que estavam apenas incubadas. É por isso que o gênio é livre: ele se livra das restrições porque ele não luta contra a correnteza, ele nada a favor dela. Não é por acaso que Adriano, o imperador romano retratado por Marguerite de Yourcenar, quer atar sua vontade ao destino de modo que ele pudesse cavalgar livremente. Conforme o trecho citado na abertura deste artigo, Adriano não quer negar a natureza, não quer tolhê-la, ele quer montar sobre ela qual em um cavalo para tirar o máximo da vida.

    Nesse ponto retomo a pergunta que coloquei no início: será que Donald Trump é um gênio que intuiu o Espírito do século XXI e por isso está destruindo implacavelmente os paradigmas do século XX? Será que ele intuiu que no século XX os Estados Unidos eram um império e agora ele precisa se transformar em uma nação entre outras e que a era dos impérios ficou definitivamente para trás? Será que ele percebeu que a “América” havia imposto a regra do livre comércio feito em dólares para que, em troca de absorver a produção industrial do mundo, ela também absorveria os capitais do mundo e poderia ter uma moeda forte que lhe permitisse gastar à vontade para manter seu poderia militar nos quatro cantos da Terra? Será que agora Trump quer que seu país siga o fluxo da história e volte a ser um país normal, que precise produzir coisas para poder trocá-las por outros produtos e não simplesmente dar notas verdes impressas a rodo aos seus parceiros comerciais? Será que ele intuiu que a hegemonia do dólar como reserva internacional ficou para trás e o melhor a fazer é tratar de adaptar os Estados Unidos ao novo normal? Será que com o fim da globalização os países procurarão ficar mais resilientes, produzir localmente e evitar depender de cadeiras globais de suprimento? Não será o encurtamento das cadeias de suprimento o melhor meio de diminuir nossa pegada de carbono em tempos de aquecimento global? Ou será que o Orange Man é um louco, ignorante, incompetente e está simplesmente causando uma disrupção na ordem econômica pós-1945 sem nada trazer de benéfico nem aos americanos e nem ao mundo? Será que a política econômica de Trump só trará recessão, perdas financeiras e desemprego em escala mundial?

    Prezados leitores, como definitivamente não sou nenhuma gênia não tenho como saber para onde o rio da História está correndo, qual o Zeitgeist do século XXI. Seja como for, fica a lição de Hegel: a história do mundo não é o palco da felicidade, porque havendo movimento há sempre as dores do parto da nova síntese, do novo fim da história, que gerará um outro ponto de partida. Aguardemos o desenrolar dos acontecimentos e nos preparemos para sofrer em prol da manifestação plena da Razão no mundo, seja através do Orange Man ou de algum outro que o desafie.

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Envelhecer como?

Eu uso o que eu tenho de inteligência para ver de longe e do mais alto minha vida, que se torna agora a vida de um outro. […] Minha vida tem contornos menos nítidos. Como acontece frequentemente, é aquilo que eu não fui, talvez, que a define com o maior grau de justiça: bom soldado, mas não um grande homem de guerra, amante da arte, mas não esse artista que Nero considerava ser à sua morte, capaz de cometer crimes, mas não acusado de crimes

Trecho retirado do livro “Memórias de Adriano”, escrito por Marguerite Yourcenar (1903-1987), em que o imperador Adriano (76 d.C.-138 d.C.) escreve uma carta a Marco Aurélio (121 d.C.-180 d.C.), que seria imperador

O turista que se embrenha em um roteiro prazeroso, que o descole da rotina e lhe abra a visão, é beneficiado por uma ebulição nas células que leva justamente à sua regeneração, o que acaba por contribuir para o equilíbrio tanto físico como mental. “Embora o envelhecimento seja irreversível, viajar pode retardá-lo e melhorar nossa saúde geral”, explicou a VEJA Fangli Hu, coordenadora da pesquisa.

Trecho retirado do artigo “Viajar é Viver” publicado na edição da revista VEJA de 4 de abril

    Um homem que subiu no Monte Etna, na Sicília, para apreciar o nascer do sol. Um homem de incansável curiosidade sobre tudo e todos que o impelia a viajar. Um homem que conheceu um moço na Ásia Menor, Antínoo e o fez seu amante tão querido que quando Antínoo morreu afogado no rio Nilo, o homem chorou muito e para consolá-lo seus súditos na Grécia estabeleceram o culto de Antínoo, que se espalhou pelo Oriente e pelo Ocidente. Este era Adriano, o imperador romano que ainda hoje é lembrado não só por seu homossexualismo e sua paixão pela arte e pelas coisas belas em geral, mas por seu legado material, que ainda pode ser visto hoje no Norte da Inglaterra, na fronteira com a Escócia, a Muralha de Adriano, relíquia do tempo em que as fronteiras setentrionais do Império Romano precisavam ser protegidas contra os povos bárbaros.

    Se na semana passada eu ofereci neste meu humilde espaço alguns conselhos tirados dos ensinamentos de Arthur Schopenhauer sobre como tocar a vida da maneira menos dolorosa possível, desta vez minha carteira filosófica tem como item disponível o exemplo do Adriano real e do Adriano personagem criado pela escritora Marguerite Yourcenar em seu livro de ficção, inspirado na vida do imperador romano. Aqui como lá se oferece uma maneira de envelhecer.

    O Adriano das Memórias está perto da morte, a qual veio para ele de maneira lenta e dolorosa. Ele confessa quão terrível é querer a morte e não conseguir obtê-la e ter de passar por um período de agonia. Nesse estado, ele decide escrever uma carta a Marco, a quem ele adotara como filho e que no futuro se tornará o imperador filósofo autor das “Meditações”, que até hoje são fonte de inspiração ética, depois de quase 2.000 anos. O trecho citado na abertura deste artigo dá uma ideia do estado de ânimo do imperador. Desapegando-se da vida, deixando de se sensibilizar pelo mundo que o rodeia, Adriano consegue ter uma visão objetiva da sua existência, justamente porque seu envolvimento emocional com as pessoas e os acontecimentos se torna cada vez menor. Ele percebe que a vida dele é feita de vazios, de muitas coisas que ele não conseguiu fazer, ser um grande chefe militar, ser um grande artista.

    Esse voo do ancião sobre seu percurso na Terra é um traço que caracteriza a idade provecta e faz com que consigamos atingir um nível de sabedoria que nos prepara para a morte. Fazer um balanço das nossas conquistas e fracassos, de maneira desassombrada, faz com que fiquemos em paz e não nos deixemos tomar pelo amargor da frustração. Afinal, o importante, como dizia o velho Frank Sinatra, é poder dizer “I did it my way”: talvez eu não tenha feito tudo aquilo que sonhara quando era jovem e cheio ou cheia de energia, mas isso não é uma grande tragédia, porque cheguei em um ponto em que adquiri um desprendimento das paixões, de modo que nada parece nem muito maravilhoso, nem muito péssimo e ter chegado já por si é uma conquista. Afinal, esse ponto de chegada permite partir para uma visão do alto que mostra tudo em perspectiva, em seu devido contexto, considerando o quadro geral e todos os fatores que contribuíram para aquele estado de coisas.

    O Adriano real, que foi imperador de Roma por 21 anos, passou mais tempo fora da cidade do que lá, na capital do seu vasto império, pois como escreveu o escritor cristão Tertuliano (160 d.C. – 240 d.C.), ele era um explorador de tudo o que havia de interessante, e por isso viajou por todos os cantos dos domínios de Roma, tanto na Europa Ocidental, quanto na Europa Oriental, passando pela Ásia Menor e pela África. E não é que essa curiosidade infinita por conhecer novos lugares e novas culturas é uma boa maneira de tornar o envelhecimento menos penoso?

    O trecho citado na abertura deste artigo faz menção ao efeito fisiológico de viagens, tal como constatado por um estudo realizado pela Universidade Edith Cowan, na Austrália. O contato com outras culturas e lugares desconhecidos, a quebra da rotina, estimula o cérebro a absorver o novo, favorecendo a plasticidade dos neurônios. O prazer advindo dos estímulos sensoriais e da beleza do local mitigam sintomas de depressão e de ansiedade. Portanto, o imperador que ao final da vida pediu para morrer por causa do sofrimento físico por que passava tinha histórias para contar ao seu filho adotivo Marco sobre um mundo de experiências que ele viveu ao colocar o pé na estrada. Experiências que iam além de ideias pré-concebidas e de princípios abstratos encontrados nos livros. Depois de quilômetros rodados, Adriano podia dizer que sua vida, vivida encontrando pessoas, culturas e lugares diferentes, era rica o suficiente para esclarecer o que ele lia nos livros.

    Prezados leitores, Schopenhauer propunha um desapego das paixões como forma de evitar o sofrimento e atingir a felicidade possível nesta vida. O Adriano de Marguerite Yourcenar, inspirado no Adriano que viveu no segundo século da era cristã, propôs como roteiro existencial a eterna curiosidade pelas idiossincrasias do mundo, como a maneira de chegar à velhice sendo capaz de um olhar sobranceiro sobre o percurso feito. Envelhecer como uma águia, sobrevoando com olhar certeiro lá embaixo e focando naquilo que é importante no grande esquema das coisas. Eis mais uma lição filosófica sobre a boa vida.

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Autoajuda com Schopenhauer

Enquanto os dois primeiros livros apresentam a vontade de um modo afirmativo, os últimos dois, que lidam com a estética e a ética, ultrapassa-os apontando para a negação da vontade como uma possível liberação. Evocando como suas principais figuras o gênio e o santo, que ilustram essa negação, esses livros apresentam a visão “pessimista” do mundo que valoriza o não-ser mais do que o ser. As artes convocam o homem para um modo de ver as coisas sem vontade, no qual cessa a atuação das paixões.

Trecho do verbete sobre o filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860), chamado de o filósofo do pessimismo, na edição de 1975 da Enciclopédia Britânica

A solução para este doloroso estado de coisas deve, de acordo com Schopenhauer, ser procurada nos mitos do budismo. O que causa nosso sofrimento é precisamente nossa vontade. Dopando a vontade, podemos no final atingir a liberação no Nirvana, ou no nada.

Trecho do livro “Wisdom of the West”, do filósofo britânico Bertrand Russell (1872-1970)

 

    Prezados leitores, imaginem um homem de meia-idade que leva uma vida ascética, dedicada à leitura de Platão, Aristóteles, Horácio, Sêneca, Shakespeare e Calderón de la Barca, além de expoentes do misticismo e do Iluminismo. Este homem não frequenta a sociedade e seu único contato social é com seus amigos de longa data que ele vê raramente. Quando não está lendo e estudando, ele passeia com seu poodle e fala consigo mesmo, gesticulando. Apesar do isolamento ou por causa dele, goza de boa saúde e acuidade mental. Pois bem, eu soube da existência deste homem recentemente e a esta altura da minha vida fiz dele meu guru. Explico-me.

    Seu nome é Arthur Schopenhauer, que nasceu em Danzig e morreu em Frankfurt. Eu já ouvira falar dele, mas não tinha a mínima ideia do teor dos seus pensamentos filosóficos. Por obra do acaso, ao procurar algo no YouTube para ouvir enquanto fazia meus exercícios matinais, deparei-me com um professor universitário de filosofia nos Estados Unidos, Christopher Anadale, que em vários vídeos faz a leitura de “Counsels and Maxims”, publicado em inglês em 1890, em que Schopenhauer apresenta uma sabedoria prática de como conduzir a vida de acordo com os princípios de sua filosofia.

    Qual não foi minha grata surpresa quando percebi que sigo muitos dos conselhos do filósofo, de maneira que escutar a formulação por um grande pensador de um modo de vida é um grande incentivo a persegui-lo sem culpas e confiante nas vantagens que ele traz. Para entender o que Schopenhauer propõe como conselhos sobre o que fazer com o vale de lágrimas que é a vida é preciso primeiro abordar os conceitos filosóficos que os embasam.

    O conceito primordial da filosofia de Schopenhauer é o de vontade. A vontade não é simplesmente um fenômeno que existe no tempo e no espaço e que pode ser percebido pelos nossos sentidos e apreendido por nosso intelecto por meio das categorias mentais, tais como causa, efeito, necessidade, contingência, etc. que Kant havia relacionado como as ferramentas à disposição do homem para a cognição. A vontade é mais que isso, é uma categoria ontológica, uma essência, é uma coisa em si mesma, unitária, imutável, insondável, além do tempo e do espaço, sem causa nem finalidade. No mundo dos fenômenos, ela se manifesta sempre, desde os impulsos cegos nas forças da natureza orgânica, passando pela natureza orgânica, como as plantas e animais, para chegar no homem que atua guiado pela razão. A vontade constitui-se assim concretamente em uma cadeia de desejos, agitações e impulsos que nunca param, um esforço inesgotável que ao final termina na morte, a grande censora de toda essa agitação, perguntando a cada pessoa: “Já basta?”

    Daí o pessimismo do filósofo: se todas essas manifestações da vontade não levam a nada além da morte e no meio tempo causam sofrimento no ser que realiza essa vontade no tempo e no espaço, dando vazão a suas paixões e desejos, para que permitir que elas ocorram? O melhor a fazer é neutralizar essa vontade como um meio de liberação do sofrimento. Conforme o trecho que abre este artigo, um dos instrumentos que Schopenhauer propõe para superar as paixões é a arte. O outro é o estudo. Há também a via acessível aos santos que é o desprendimento do ego e a dedicação aos outros, a compaixão pelo sofrimento alheio. Qualquer um desses três caminhos será um meio de negar o ser, o indivíduo que se manifesta a cada dia querendo algo, sentindo, frustrando-se quando seus desejos não são alcançados e sempre indo atrás de um horizonte de felicidade que foge sempre.

    Nesse sentido, a receita para uma vida que valha a pena ser vivida não é procurar atingir a felicidade. Ter esse objetivo é ter uma visão positiva da vontade e de sua realização no mundo dos fenômenos. Dar vazão às paixões só nos traz sofrimento, então a melhor aposta existencial é a de evitar o sofrimento neutralizando-as por meio de um estilo de vida exemplificado na rotina seguida pelo próprio filósofo, feita de poucos contatos sociais e muita reflexão e estudo para quem tem a capacidade de dedicar-se a essas atividades, claro.

    É nesse ponto que os hábitos de Schopenhauer coincidem com os meus, que a mim me parecem os melhores neste momento da minha vida. Pode ser que para um jovem cheio de energia, força, vitalidade, saúde e beleza essa negação do ser rumo ao Nirvana budista, conforme explicado por Bertrand Russell ao abordar as ideias do filósofo pessimista por excelência, seja absurda. Afinal, aos 20 anos nossos sofrimentos são poucos: não temos que frequentar médicos frequentemente; nosso otimismo com o futuro e nossa beleza advinda da idade nos tornam agradáveis e atraentes, permitindo que amemos e sejamos amados.

    No entanto, à medida que os anos passam o corpo começa a claudicar e deixamos de ser saudáveis, belos e radiantes como éramos em nossa tenra idade. Muitas pessoas se afastam de você e vice-versa e não é mais tão fácil estabelecer novas relações de amizade ou amor. Por acaso os conselhos de Schopenhauer não fazem bastante sentido então? O estudo, a arte, a caridade com o próximo não podem servir de consolo para pessoas mais velhas, que passam mais tempo sozinhas porque o círculo de relações diminuiu? Em tais circunstâncias o desprendimento do ser proposto pelo filósofo rumo ao nada pode ser um meio de evitar sofrimentos em um momento da vida em que o sofrimento fica cada vez mais comum.

    Prezados leitores, a autoajuda de Schopenhauer não está acessível a todos, porque nem todas as pessoas têm vocação para atividades intelectuais ou estéticas, mas de qualquer forma a lição dele serve para qualquer um neste nosso mundo encantado da sociedade de consumo feito de grandes expectativas de autorrealização, de conquistas e de vitórias. Baixemos a bola sobre o que podemos esperar do mundo e das pessoas que o habitam e teremos uma vida mais tranquila, sem grandes emoções, mas sem grandes decepções.

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Plantations de dados

Dono de 1,5% do mercado global de data centers, com 181 unidades, o Brasil tem se mostrado um país atrativo para o setor. Esse mercado cresceu 628% entre 2013 e 2023 no país, segundo o estudo “Brazil data center report”, da consultoria imobiliária JLL.

Trecho retirado do artigo “Centros de dados sustentáveis”, publicado na edição de março da revista Pesquisa FAPESP

Mantemos a péssima posição internacional na qualidade da educação e na desigualdade com que ela é oferecida. O número de adultos analfabetos continua praticamente o mesmo. Não temos uma estratégia para abolir a pobreza e dar à população instrumentos para sobreviver sem necessidade de políticas de compensação. Continuamos, enfim, sendo um país distante da inovação tecnológica, agora especialmente, com os avanços extraordinários da inteligência artificial. Seguimos sem estratégia de desenvolvimento para a economia do futuro, baseada no conhecimento e na diversidade ecológica.

Trecho retirado do artigo “Democracia Viva” escrito pelo ex-reitor da Universidade de Brasília, ex-Ministro da Educação e ex-senador Cristovam Buarque (1944-

    Prezados leitores, já repararam que atualmente para a pessoa mostrar suas credenciais intelectuais ela precisa pincelar seu discurso com palavras em inglês? Isso mostra que ela teve acesso às fontes originais do saber, que está antenada com o que há de mais moderno em termos de conceitos e teorias. Deparei-me com isso ao assistir a uma palestra sobre inteligência artificial. Ao longo de uma hora e meia, ouvi várias vezes “Better together” que é um lema usado no mundo de IA para enfatizar a necessidade do ser humano trabalhar em conjunto com as máquinas para resultados melhores. Ouvi também a palestrante usar “hype” para designar o fenômeno de todo mundo dizer que usa IA, mesmo sem fazê-lo. Ela poderia ter falado simplesmente exagero, mas preferiu a palavra em inglês, talvez porque ache que haja uma nuance de sentido não captada por nosso humilde idioma, que nunca foi usado para criar nada em termos de ciência da computação.

    Em suma, tanto na forma quanto no conteúdo do seu discurso, a palestrante mostrou ser moldada por seu contato com os Estados Unidos, cuja cultura ela absorve e transmite aos seus ouvintes. “The US innovates, the EU regulates and China replicates” foi uma de suas tiradas que resumem sua visão de mundo. Visão esta que está sendo tornada obsoleta pelos fatos. De acordo com o Australia Strategic Policy Institute, um centro de estudos patrocinado pelo governo australiano, no ano 2000 os Estados Unidos eram os líderes em 60 das 64 tecnologías críticas que moldarão a economia do futuro, como a inteligência artificial, a robótica, a tecnologia quântica, a cibernética, a biotecnologia, materiais avançados, dentre outras. Já no último levantamento do instituto, a China lidera em 57 dessas 64 tecnologias. Portanto, apesar de a frase ser engraçada e mostrar o conhecimento pela palestrante do que falam nos Estados Unidos, ela está sendo desmentida pelos avanços gigantescos que os chineses têm feito para evitar a armadilha dos países de renda média, isto é, de países que eram subdesenvolvidos até a década de 70 e, absorvendo a tecnologia do Ocidente, conseguiram industrializar-se produzindo produtos de baixo valor agregado. A China quer galgar um patamar mais alto, ela quer entrar no seleto clube dos países que não copiam, mas criam e estabelecem o padrão para o mundo. Nós no Brasil ainda achamos que são principalmente os Estados Unidos que fazem isso e certamente a palestrante, a cuja fala bilíngue assisti, certamente compartilha dessa opinião.

    Não me admira que seja assim. Ela é advogada em uma grande firma que faz negócios com gringos que querem investir no Brasil, portanto não pode ser uma grande defensora de soberania econômica em relação a países de estrangeiros. O momento mais interessante da palestra foi aquele em que ela abordou a criação de data centers no Brasil, que está se transformando num grande filão de negócios imobiliários, afinal é preciso comprar terrenos para instalar os equipamentos que processarão os dados que servirão de base para o desenvolvimento dos modelos de IA generativa. Segundo ela, o problema aqui é a falta de segurança jurídica, a carga tributária e a falta de infraestrutura de cabeamento para a transmissão dos dados.

    A questão de criação de centros de dados no Brasil é tão importante que há um grupo de trabalho envolvendo vários ministérios para elaborarem um plano para facilitar a instalação deles no Brasil, para que possamos competir com países como Colômbia, Chile e México. Conforme o trecho que abre este artigo, houve um boom de instalação de centros de dados no Brasil nos últimos 10 anos, mas de acordo com a palestrante, poderíamos atrair mais empresas se estabelecermos o marco regulatório correto que garanta o lucro dos investidores.

    Foi então que um dos ouvintes levantou a mão e perguntou: “E qual será a vantagem para o Brasil?” Haverá geração de empregos? Ou será uma mera questão de instalar um monte de plantations de dados pelo país afora, assim como temos um monte de plantations de soja e de outras commodities?”  Colocação interessante, que talvez a palestrante não esperava ouvir, mas que a obrigou a abordar o lado negro dos centros de dados.

    Afinal, esses locais cheios de servidores, que precisam ser constantemente resfriados para poderem funcionar 24 horas por dia, não precisam de ninguém que os liguem e desliguem, pois rodam automaticamente. Portanto, não há necessidade de contratação de grandes contingentes de trabalhadores. Além disso, os equipamentos são todos importados, nada é produzido no Brasil e seu funcionamento exige grande quantidade de energia e de água. Estima-se que 1% da demanda global por energia seja proveniente de centros de dados de computação em nuvem. Considerando isso, será que o valor agregado produzido no Brasil é suficientemente grande para justificar o uso dos nossos recursos naturais? Apesar de considerados verdes, pois renováveis, como a energia elétrica e a água, sua exploração não deixa de ter impactos ambientais e de ser algo que não ficará disponível para a população. Finalmente, será que algum conhecimento será produzido no Brasil com a instalação de centros de dados? Ou só haverá o processamento mecânico aqui e os resultados serão compilados, analisados e transformados em aplicações tecnológicas na sede das empresas que instalam os centros de dados aqui?

    Em suma, a definição dada pelo ouvinte de “plantation de dados” pode ter colocado o dedo na ferida do Brasil, apontada por Cristovam Buarque em sua coluna na revista VEJA e mencionada na abertura deste artigo. Se multinacionais como Microsoft e Amazon estão instalando centros de dados no Brasil simplesmente por causa das nossas fontes de recursos naturais renováveis, isso é sintoma da nossa falta de cérebros que pudessem se debruçar sobre esses dados processados e criar soluções de AI para problemas reais a partir disso. E se não temos cérebros suficientes que atraiam empresas é porque não temos educação de qualidade que prepare os alunos para refletir e gerar produtos e serviços inovadores.

    Prezados leitores, enquanto a tarefa do momento é ter uma opinião sobre se Bolsonaro ou não tentou um golpe de estado em 8 de janeiro de 2023, mesmo que nenhum de nós tenha lido a denúncia da Procuradoria-Geral da República, nos gabinetes de Brasília preparam-se medidas para atrair empresas para espalharem plantations pelo Brasil, como se já não tivéssemos um número suficiente delas. De soja ou de dados, elas revelam o ponto fraco do Brasil em termos de formação de capital humano. Talvez quando o ciclo de julgamentos de celebridades políticas termine, possamos nos dedicar a resolver assuntos mais estratégicos para o nosso futuro.

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