As otárias

Com mais de 60 anos, um pouco depois de se aposentar, ela havia aceitado se ocupar de novo de uma criança – do filho do seu filho. A este também nunca faltou nada – nem roupas limpas, nem um bom almoço no domingo, nem amor. Tudo isso, na vida dela, ela havia feito. Uma análise pouco detalhada da humanidade deve necessariamente levar em conta esse tipo de fenômeno. Tais seres humanos historicamente existiram. Seres humanos que trabalharam a vida toda, duramente, unicamente por devoção e por amor: que davam literalmente sua vida aos outros em um espírito de devoção e de amor: que não davam de maneira nenhuma a impressão de se sacrificarem; que na realidade não vislumbravam outra maneira de viver que de doar sua vida aos outros, em um espírito de devoção e de amor. Na prática, esses seres humanos eram geralmente mulheres.

Trecho retirado do livro “Les particules élémentaires” do escritor francês Michel Houellebecq (1956- ), descrevendo a avó do personagem principal do romance, Michel

Se não poderia haver um policial em cada esquina, poderia haver deuses, mais fantásticos ainda por não serem vistos, podendo ser multiplicados livremente e de acordo com a necessidade em seres místicos, exortativos ou ameaçadores, percorrendo todos os graus da divindade e do poder, desde o ermitão do deserto até o comandante supremo, preservador e destruidor das estrelas e dos homens. Que sublime concepção! – que organização comparável para sua disseminação e operação! – que apoio sem preço a professores, maridos, pais e reis!

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre as ideias que Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França de 1804 a 1814, tinha sobre a religião como fundação da ordem moral

Se, por um lado, o fato de amar D. Pedro fazia-a aceitar calada tudo o que viesse dele, por outro ela tinha uma noção maior do que o marido do seu dever como imperatriz e estaria pronta a aguentar as humilhações para não desprestigiar a coroa perante o povo. Não lhe restavam alternativas a não ser fingir que nada estava ocorrendo. […] Porém o excesso de submissão a que se impusera, pois não lhe era natural na Áustria aceitar as coisas de que não gostava sem lutar, cobraria o seu preço, abalando-a psicologicamente no futuro.

Trecho do livro “D. Leopoldina, a história não contada: a mulher que arquitetou a independência do Brasil” do historiador Paulo Rezzutti (1972-

    Prezados leitores, imaginem a cena, passada em janeiro de 1826, nas águas do Oceano Atlântico, rumo a Salvador, Bahia. D. Pedro I (1798-1834), Imperador do Brasil, anda pelo convés do navio acompanhado de sua amante, Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), a Marquesa de Santos e de sua filha, Maria da Glória (1819-1853), a futura rainha Maria II de Portugal. Trancada na cabine está a Imperatriz Leopoldina (1797-1826), pouco inclinada a expor-se aos tripulantes e aos passageiros do navio considerando que o marido não fazia a mínima questão de esconder seu relacionamento amoroso com a “Titília”.  Chegando em Salvador, Pedro iria a todos os eventos públicos acompanhado da mulher e da amante e com esta reza a lenda que teria tomado banho nu no Morro de São Paulo. A seu pai, o imperador Francisco I (1768-1835), Leopoldina confessaria que a viagem fora “extremamente desagradável em todos os sentidos”.

    Pudera, ter que se apresentar à vista dos súditos ao lado da Marquesa de Santos e fingir que estava tudo bem exigia um autocontrole muito grande, mas Leopoldina sempre esteve à altura da tarefa, pois sabia que coisas muito mais importantes do que suas vexações pessoais estavam em jogo, conforme o trecho que abre este artigo. Era preciso manter a imagem da Coroa perante o povo brasileiro, de modo que a monarquia, um regime recém-implantado nos trópicos, pudesse fincar raízes e consolidar-se. Em sua biografia da primeira imperatriz do Brasil, Paulo Rezzutti, que credita a ela a ideia da independência do país, ressalta essa capacidade da augusta Maria Leopoldina Carolina Josefa de Habsburgo-Lorena de agir sempre em prol dos interesses do Estado, de mostrar-se sempre altiva e digna, apesar de por dentro estar dilacerada pela tristeza de saber que seu esposo não gostava dela.

    Leopoldina cumpriu suas obrigações nos mínimos detalhes: apesar de viver isolada e triste por não gozar da companhia de Pedro, participava de cerimônias públicas mostrando-se sorridente para alimentar o espetáculo da monarquia, praticava a caridade ao ponto de endividar-se e quando já estava agonizando em seu leito de morte, vítima de uma erisipela para alguns, ou de febre tifoide, de acordo com o diagnóstico agora mais atualizado, chamou os funcionários do Palácio para agradecer-lhes os serviços e perdoá-la por algo que pudesse ter feito a eles. Enfim, fez o que ela via que era melhor para que a monarquia sobrevivesse no Brasil e para que seus descendentes pudessem governar o país por anos a fio.

    Essa abnegação, essa dedicação aos outros como elemento que dá sentido à vida e que é em sua maior parte uma característica feminina, foi notada por um escritor contemporâneo em pleno século XXI, Michel Houellebecq, em seu livro de 1998, “Les particules élémentaires”, cujo trecho é citado na abertura deste artigo. A avó de Michel o criou depois de uma vida de trabalho, quando já estava aposentada e, portanto, tinha um pouco de tempo para descansar. Realizou tal tarefa sem pedir nada em troca, sem esperar nada em troca, apenas porque sentia ser essa sua obrigação geral. Nesse sentido, Michel Houellebecq contrapõe essas mulheres que se sacrificavam pela família, ou pela sociedade em geral, às mulheres produto da revolução cultural da década de 1960. Mulheres para as quais ser mãe era simplesmente ter uma experiência da maternidade, como fazer sexo era também uma experiência, nada além disso, daí que não passava pela cabeça de uma mulher liberada limitar seus desejos pessoais, sua aventura de vida pelo fardo de cuidar de filhos. O personagem Michel do livro, um biólogo, é filho de uma dessas mulheres, que o abandona porque quer seguir em frente, desimpedida, livre para amar, para fazer suas próprias escolhas sem ter que levar em conta as necessidades dos outros.

    Se a mãe de Michel é fruto do ambiente em que “é proibido proibir”, como descreve Michel Houellebecq, sua avó é fruto de qual ambiente? Ora, daquele mesmo ambiente que inculcou em Leopoldina o senso do dever acima dos sentimentos pessoais, o ambiente da religião. O escritor francês, ao mostrar em suas obras esse Ocidente pós-cristão, povoado de seres individualistas e vazios espiritualmente, revela pelo contraponto a verdade que já havia sido constatada por Napoleão Bonaparte no século XIX e que o fez assinar uma Concordata com o Papa em 1801, depois de mais de dez anos em que a Revolução Francesa havia espoliado a Igreja Católica de seus bens, banido a educação religiosa e tornado o Estado laico.

    Conforme o trecho que abre este artigo, é forçoso reconhecer que a fundação mais sólida que pode haver para uma ordem social é a religião. A religião é uma arma poderosa para controlar o comportamento das pessoas pois ela cria uma narrativa que dá sentido à vida, principalmente para aqueles que saem perdendo e que, portanto, teriam mais razões para revoltarem-se: se uma mulher é traída pelo marido publicamente, humilhada e negligenciada, basta acreditar na ideia de que uma justiça divina operará no futuro. Os que sofreram neste mundo serão recompensados no outro lado, de forma que aquela que só cumpriu obrigações e acabou morrendo por estar abalada física e psicologicamente terá a eternidade para desfrutar do Paraíso, o lugar dos virtuosos.

    Uma ferramenta como essa, que ao mesmo tempo enche de medo os que se atrevem a sair da minha pelo medo da punição do ser onipotente e enche de esperança os que não levaram nada em troca por seus desvelos ao longo da vida não pode ser deixada de lado por nenhum governante que preze pela estabilidade. E foi assim que Napoleão, apesar de seu ceticismo pessoal sobre a existência de Deus, fez questão de assinar uma Concordata com o Papa Pio VII em 16 de julho de 1801.

    Prezados leitores, a Marquesa de Santos deixou a corte definitivamente em 1829, quando D. Pedro precisava livrar-se dela para poder casar-se novamente. Voltou a São Paulo com burros de dinheiro, literalmente, que lhe permitiram viver confortavelmente até os 70 anos de idade e ainda casar-se de novo e ter mais filhos com Rafael Tobias de Aguiar (1794-1857), o patrono da ROTA. Entre os bem-pensantes, ela é vista como uma mulher que ao desafiar as convenções sociais empoderou-se, tomando as rédeas do seu destino. Leopoldina morreu aos 29 anos de idade, sem receber nada em troca do que ela fez pela Monarquia brasileira. Sua presença era tão importante para dar credibilidade ao regime que, quando D. Pedro viu-se sozinho, dando vazão a suas paixões sem o contraponto da calma, do conhecimento e da sabedoria da sua esposa, ele só meteu os pés pelas mãos e teve que abdicar em 1831. A humilde avó do personagem Michel morre em um hospital, depois de ter trabalhado a vida toda em troca de quase nada. Uma foi esperta, as outras foram otárias, porque só perderam. Mas o que seria do mundo se não houvesse um pequeno grupo de otárias, geralmente mulheres conscienciosas orientadas por princípios religiosos? O que teria sido de Michel se não tivesse tido sua avó como mãe e o que teria sido do Brasil se Leopoldina não tivesse estado ao lado de D. Pedro, aconselhando-o a pegar o fruto que estava maduro no momento crucial da formação do país como nação independente? As otárias sempre perdem, mas sem elas as espertas não poderiam brilhar, porque não haveria ordem no mundo contra a qual insurgir-se. Viva as otárias!

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O Jogador

Nada poderia ser mais absurdo do que lições de moral em tal momento! Ah, gente convencida: com que convencimento orgulhoso esses tagarelas estão prontos para fazer seus pronunciamentos! Se eles soubessem o quanto eu mesmo percebo o quão repugnante é minha condição atual, ele s não teriam a coragem de me ensinar nada.

Trecho retirado do livro “O Jogador” de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) que conta a história de Alexey Ivanovitch, um viciado em apostas, alter ego do autor

Nos últimos cinco anos, o número de pessoas que arriscam algum tipo de palpite on-line, nas mais variadas plataformas e modalidades de jogos, atingiu a marca alarmante de 52 milhões – praticamente a população da Argentina e do Paraguai juntas. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva apontou que 86% dos apostadores possuem dívidas e que seis em cada dez jogadores estão com o nome sujo nos órgãos de proteção ao crédito.

Trecho retirado do artigo “O drama da compulsão”, publicado na edição de 1º de novembro da revista Veja São Paulo

Agora que as crenças míticas estavam perdendo sua influência e a imprensa havia facilitado a preservação do conhecimento e a passagem do bastão da civilização, os homens podiam esperar construir culturas duradouras com base em um código moral no qual o conhecimento, crescente e em expansão, iria aumentar o controle do homem sobre suas tendências antissociais e promover a cooperação e a unidade.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre o filósofo francês Constantin François de Chassebeuf, conde de Volney (1757-1820)

    Prezados leitores, sou viciada em café, ou para usar o palavreado que um psiquiatra utilizaria, meu sistema de recompensa cerebral é ativado pelo cheiro do café, pela experiência de sentar em um banco de padaria e tomá-lo enquanto leio um livro na hora do meu almoço. Já tentei parar porque meu dentista reclamava dos meus dentes empretecidos e porque o estímulo da cafeína prejudica meu sono. Permaneci na abstinência por cerca de três meses e depois reincidi no “crime”. De volta ao café e à dopamina que ele libera em meu cérebro, esse caminho do prazer parece ter se gravado nos meus neurônios para sempre e nem penso em tentar abandonar o vício. Talvez os malefícios para minha saúde superem os benefícios, mas o ritual do café e as sensações correlatas são uma rotina que se realiza na base do piloto automático. É um verdadeiro sistema autopoiético.

    Faço tal confissão em meu humilde espaço, mas outro indivíduo muito mais importante que eu confessou seu vício escrevendo um livro em que o personagem principal, Alexey Ivanovitch, é um frequentador compulsivo de casas de jogo e cassinos. Fiódor Dostoiévski publicou O Jogador em 1866 e nele retratou a complexidade da mente de um viciado. Conforme o trecho que abre este artigo, o Sr. Ivanovitch não é um homem ignorante, incapaz de perceber o que está fazendo. Ele sabe muito bem que não consegue parar de jogar e a que níveis de torpeza ele chega ao dar vazão a sua pulsão pela jogatina. Apesar de não se eximir de culpa, ele se irrita com aqueles que vêm lhe dar lições de moral, como se todos esses bons cidadãos estivessem imunes à tentação das roletas e dos dados. Ora, ninguém está, justamente porque ter consciência de estar cometendo um ato vil não é suficiente para que a pessoa resista à tentação do banho de dopamina proporcionado pela compulsão. Ah, se a conscientização levasse à solução do problema! Quão inocente é pensar assim, em pleno século XXI, à luz do conhecimento que temos do funcionamento do cérebro e dos circuitos de recompensa nele criados.

    No entanto, era assim que se pensava no século XVIII, no florescer do Iluminismo. O filósofo francês Constantin François de Chassebeuf, conde de Volney, citado na abertura deste artigo, considerava que uma nova era se abria para a humanidade. A possibilidade de preservação do conhecimento acumulado por meio de livros impressos eliminava o risco de a Europa cair em uma nova Idade das Trevas, como havia sido a Idade Média, em que a produção intelectual estagnara devido ao colapso do Império Romano e à destruição física de grande parte do legado civilizacional de Grécia e Roma. Com a difusão do conhecimento e o abandono dos mitos religiosos predominantes no mundo medievo, o ser humano pautaria seu comportamento por um código moral baseado no controle das compulsões instintivas pela razão. Ele perceberia que isso era o melhor para si e para a sociedade, de modo que todos agiriam em cooperação mútua para cada indivíduo atuar sem prejudicar a si mesmo nem aos outros, garantindo, no final das contas, o bem-estar geral.

    Superação das superstições religiosas, expansão do conhecimento, aumento da racionalidade, diminuição e eliminação das práticas compulsivas, passionais e violentas. Receita infalível, não? Ainda mais em pleno século XXI, quando mediante alguns cliques no computador podemos nos informar por exemplo, sobre os efeitos nocivos do vício sobre o cérebro. Ou o que é o jogo patológico. E no entanto, o buraco parece ser mais embaixo, particularmente em um país como o Brasil, em que o uso médio diário da internet é de 9 horas e 32 minutos, de acordo com levantamento global do provedor Proxyrack. Isso nos faz ocupar o segundo lugar no ranking, atrás da África do Sul. E quanto ao uso de mídias sociais, cada brasileiro acessa em média 8,4 redes, o que nos coloca de novo em segundo lugar, ao lado da Indonésia e atrás da Índia. Somando-se a essa fixação dos brasileiros nas telas de celulares e de computadores a paixão pelo futebol e está pronto o cenário para a explosão das apostas on-line.

    Explosão é o termo apropriado, considerando os números citados na abertura deste artigo. Temos uma Argentina e um Paraguai juntos, dentro do Brasil, em número de apostadores. E esses jogadores, por conta do seu passatempo estão endividados. Há casos relatados de pessoas que devem mais de 100.000 reais por causa de seguidas apostas fracassadas. O que fazer? Tratar os jogadores como doentes, acometidos de uma compulsão, incapazes de tomar decisões racionais? O governo federal parece ter dado um passo nesse sentido, anunciando que vai restringir a utilização do cartão do Bolsa Família para apostas, em vista do fato de que em agosto de 2024 os beneficiários do principal programa social do Brasil gastaram 3 bilhões de reais no mercado de apostas.

    Ocorre que se formos por esse caminho de adotar uma atitude paternalista em relação a pessoas que “não sabem o que fazem”, como fica nossa autodeterminação? Afinal, se o auxílio monetário é um direito do cidadão e ao recebê-lo ele torna-se proprietário do dinheiro, como negar-lhe o direito de decidir o que fazer com ele? Será que o governo tem o direito de dizer às pessoas como elas devem dispor da sua renda? E se ficar decidido que algumas pessoas têm direito à autodeterminação e outras ao paternalismo, que critérios utilizar para classificar os indivíduos em uma ou outra categoria? Nível de endividamento? Nível de escolaridade? Nível de renda? Em última análise, qual será o preço da liberdade? Ter ou não uma certa dívida, um certo diploma e um certo salário?

    Prezados leitores, os impactos dos jogadores sobre a sociedade brasileira começam agora a ser notados. Meu singelo expresso duplo não é nada tóxico comparado às apostas on-line que levam pessoas à ruína financeira, à deterioração das relações pessoais e até ao suicídio. Talvez o conde de Volney, se observasse a cena brasileira e de posse das suas convicções iluministas, diria que para haver jogadores responsáveis, basta que as pessoas sejam informadas da verdadeira natureza da jogatina, dos seus prós e contras e elas naturalmente controlarão seus desejos de apostar. De qualquer forma fica a dica: apostem com moderação, mesmo quando estejam ganhando. Nunca é demais lembrar que jogo não pode ser nada mais do que um passatempo inofensivo, não meio de investimento de economias. E para consolo dos pobres viciados, saibam que um dos grandes nomes da literatura mundial foi um jogador.

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Somos todos burgueses!

Ela era mais educada para os assuntos práticos do que a nobreza ou o clero, e estava mais bem equipada para comandar a sociedade na qual o dinheiro era o sangue pulsante. Ela via a pobreza como a punição da estupidez e sua própria riqueza como a justa recompensa pela diligência e inteligência. Não acreditava em um governo pelos sanscullotes; denunciava a interrupção do governo pelas revoltas do proletariado como uma impertinência intolerável. Ficava resolvido que quando o som e a fúria da revolução tivessem amainado, a burguesia seria a comandante do Estado.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a burguesia francesana época da Revolução Francesa

Morador da Brasilândia na Zona Norte, o motoboy Willian Miguel, de 27 anos, que faz entregas de aplicativo de delivery de comida há quatro anos, também foi atraído pelas promessas do discurso do ex-coach.

– O mais importante são as ideias empresariais dele, a visão de negócio – afirma Willian, que já teve carteira assinada quando fazia entrega de medicamentos para uma rede de farmácias e ganhava, segundo ele, um quarto da renda atual. – Os ideais do Boulos e da esquerda, do Lula, é o foco na CLT. Só que a gente veio para isso (os aplicativos) já para sair da CLT. A carteira tem as suas vantagens, mas não são totalmente boas. Metade do salário vai só para desconto de imposto (a alíquota máxima é de 27,3%). Deveria ser opção do trabalhador depositar, mas não ser obrigado – opina o motoboy.

Trecho retirado do artigo “Foco no voto do empreendedor”, publicado no jornal o Globo de 27 de outubro, sobre o discurso de Pablo Marçal enfatizando a prosperidade durante a campanha à prefeitura de São Paulo em 2024.

A USP faz há anos pesquisas, das quais participo, que dissecam o tamanho da devastação psíquica que o discurso do empreendedorismo produz nas pessoas. O você contra todo mundo, sem ajuda de ninguém. O todo mundo em competição o tempo todo. Pessoas em situação de precariedade, de vulnerabilidade econômica, obrigadas a serem empreendedoras de seu próprio sofrimento. […] O que precisamos é mostrar uma outra gramática dos vínculos sociais. A de solidariedade real. […] Não transformar o trabalhador em empreendedor sufocado pelo capitalismo de plataforma, que o fará trabalhar como um desesperado para não conseguir nada, sem garantia alguma.

Trecho retirado de uma entrevista do professor de Filosofia da USP Vladimir Safatle, publicada no jornal o Globo de 27 de outubro

    Prezados leitores, confesso ter um grande medo de motoboys. Quando eu os vejo no cruzamento de ruas sei que nunca pararão no sinal vermelho e por isso preciso estar sempre alerta para que quando seja tempo de  atravessar na faixa de pedestres eu o faça sempre antes de um deles acelerar e eu correr o risco de ser atropelada por um motoqueiro que não pode perder tempo e esperar que o sinal se torne verde. Vida muito louca, a deles, que têm pressa para fazer entregas, pois quanto mais entregas mais dinheiro. E a minha, que vivo angustiada em imaginar que daqui a alguns anos não terei os reflexos necessários para fugir dos motoqueiros como consigo fazer hoje.

    Apesar do meu medo e raiva pelo comportamento totalmente transgressivo das leis da boa convivência no trânsito, quando os vejo sentados na calçada consultando seu celular para verem se chegou algum pedido de entrega, fico imaginando que por mais que a aceleração incessante deles me deixe ansiosa, fazer do smartphone um instrumento de trabalho deve ser fonte de maior ansiedade ainda, pois o piscar da luz na tela passa a guiar todos os seus passos. Enfim, nutro um sentimento negativo por motoboys, mas não posso deixar de entender o estresse sob o qual vivem.

    Nessas últimas eleições municipais, que terminaram no domingo dia 27, descobri uma outra coisa a respeito dos motoboys que trabalham para aplicativos de entrega de mercadorias.  Eles são colocados na categoria social de empreendedores periféricos, pessoas como Willian Miguel, cujos princípios morais e filosóficos ele expôs ao repórter do jornal O Globo, conforme o trecho que abre este artigo. Willian é periférico porque mora na periferia de São Paulo, no bairro da Brasilândia e é empreendedor porque ele tem a mentalidade e a atitude de um legítimo homem de negócios, aquele que na Revolução Francesa era chamado de burguês. Ele quer ter liberdade para trabalhar com entregas do modo mais conveniente para ele, isto é do modo que lhe permita ganhar o máximo possível.

    Para que esse objetivo pecuniário se concretize ele não quer saber do governo interferindo na vida dele, tomando-lhe o dinheiro na forma de imposto de renda ou contribuição previdenciária. Sem registro em carteira, por favor, sem CLT, sem vínculo formal de emprego. Isso tudo é uma grande aporrinhação porque se Willian pagasse tudo isso ele tiraria um quarto do que tira hoje. O empreendedorismo de Willian é o empreendedorismo dos motoqueiros que cruzam dia e noite as ruas de Sâo Paulo e que nos amedrontam com sua liberdade de desrespeitar sinais vermelhos, de virar em locais proibidos, de andar pela calçada e pelas ciclofaixas e ciclovias.

    É verdade que os empreendedores periféricos arriscam sua vida e arriscam a vida de todos com seu comportamento arrojado na direção. Mas a bem da verdade, o risco é da essência do empreendedorismo e se Elon Musk não tivesse se arriscado a perder bilhões de dólares em um lançamento fracassado do foguete Starship, em abril de 2023, sua empresa Space X não estaria agora se preparando para o sexto voo da nave que Musk pretende um dia que chegue a Marte para iniciar a colonização daquele planeta. Então devemos celebrar os Willians Migueis de Sâo Paulo como Elon Musk é celebrado nos Estados Unidos, certo? Assim fez Pablo Marçal, o empresário goiano que no primeiro turno das eleições à prefeitura de São Paulo teve 1.719.274 votos e que dizia que Jesus Cristo não distribuiu pão, ele o multiplicou, para desconstruir o discurso da esquerda de justiça social. Se nem Jesus Cristo dava nada a ninguém porque eu devo dar alguma coisa ao governo pagando impostos e contribuições previdenciárias e porque o governo haverá de dar alguma coisa caso impostos e contribuições previdenciárias não sejam arrecadados?

    Para o filósofo Vladimir Safatle, aceitar essa lógica de que não há justiça social nem possível nem desejável e a figura do empreendedor periférico como personagem a ser louvado e encorajado é o suicídio da esquerda no Brasil. No trecho que abre este artigo, ele revela o que há por trás desse homem livre das amarras do governo, livre para trabalhar o quanto quiser, a qualquer horário do dia e dia da semana, livre para ficar com todos os seus rendimentos para si sem ter que compartilhar nada com o Estado opressor.

    Na visão de Saflate, o empreendedor periférico é um sujeito que não conta com ninguém e só conta consigo mesmo. O mundo está contra ele, inclusive os pedestres como eu, que não gostam do comportamento temerários dos adeptos da teologia da prosperidade. E ao contrário de homens de negócio como Elon Musk, cujo risco é calculado, mensurado e embutido no preço dos produtos e serviços que ele oferece, o risco da vida louca dos motoboys não é compartilhado com ninguém nem repassado a ninguém: se o motoboy tem um acidente de trânsito ele para de trabalhar e fica sem ganhar. Como não é registrado e não paga contribuições previdenciárias, não terá nenhuma renda durante o período de inatividade e será um sujeito de sorte se conseguir receber tratamento médico de emergência em uma instituição de ensino e pesquisa, como o Hospital das Clínicas.

    Em suma, o empreendedor periférico é na verdade um sujeito vulnerável, que por qualquer tropicão na rua pode ter sua vida totalmente desestabilizada. Daí que Saflate defende na entrevista dada ao Globo que a esquerda brasileira evite cair na armadilha do culto ao empreendedor periférico e proponha uma narrativa alternativa fundada na solidariedade real dos vínculos sociais viabilizada pelo Estado, que estabelece regras para o trabalho de forma que aqueles que não tem poder financeiro suficiente para garantir sua plena prosperidade material possam ter o necessário para a vida com dignidade.

    Belas palavras do eminente filósofo, mas ele mesmo reconhece que a teologia da prosperidade defendida pela direita fincou raízes no Brasil do século XXI e eis que somos todos burgueses em nosso país, tais como aqueles do século XVIII na França descritos por Will Durant no trecho que abre este artigo. Burgueses confiantes na nossa capacidade intelectual e moral, burgueses que acumularam riqueza por mérito próprio, e a quem devem ser dadas as rédeas do governo do país para que a liberdade, a prosperidade e a propriedade frutifiquem.

    Prezados leitores, façamos como Willian Miguel e tantos outros empreendedores periféricos e sigamos a cartilha espiritual de Pablo Marçal: mudemos nosso mindset e tenhamos a certeza de que nosso sucesso só depende de nós e de que se fracassarmos a culpa é da nossa estupidez. Se cairmos de uma moto em uma grande avenida de São Paulo, basta levantarmo-nos e seguirmos em frente, mesmo que seja mancando, se arrastando ou na maca desacordados. O importante é sermos donos do nosso próprio destino, sem empecilhos, principalmente do governo, o grande elefante na sala. Multipliquemos nossos pães e seremos todos burgueses!

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O triunfo da vontade

Brienne tornou-se uma prova formativa para o garoto de dez anos, tão longe de casa em um ambiente estranho e rígido. Os outros alunos não perdoavam seu orgulho e temperamento, que pareciam tão desproporcionais a sua nobreza obscura. “Eu sofri infinitamente com as gozações dos meus colegas, que zombavam de mim por ser estrangeiro.” O jovem desgarrado recolheu-se em si mesmo, aos estudos, aos livros e aos sonhos. Sua pré-disposição a ser taciturno aumentou; ele falava pouco, não confiava em ninguém e mantinha-se afastado de um mundo que parecia organizado para atormentá-lo.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a infância de Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França de 1804 a 1814, vivida em uma academia militar

 

A virtude consiste na coragem e na força; … a energia é a vida da alma… O homem forte é bom; somente o homem fraco é ruim.

Trecho de um ensaio escrito por Napoleão em 1791 intitulado “Quais verdades ou sentimentos devem ser inculcados nos homens para que sejam felizes”

De um lado temos a moralidade do senhor, na qual o bem conota a independência, a generosidade, a autossuficiência, e que tais; de fato, todas as virtudes que pertencem ao homem de alma grande de Aristóteles. Os defeitos opostos são a subserviência, a mesquinhez, a timidez e assim por diante, e essas qualidades são ruins.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West”, escrito pelo filósofo e matemático inglês Bertrand Russell (1872-1970), sobre o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900)

    Prezados leitores. Imaginem um menino magro, baixinho, de compleição malsã, que falava um francês claudicante, vindo de um rincão da Europa, a Córsega, uma ilha que havia sido transferida por Gênova à França em 1768, portanto um ano antes de este menino nascer, o que fazia dele um francês por acaso. Imaginem também esse menino apresentando-se como nobre, quando na verdade seu pai havia conseguido um certificado de nobreza reconhecido pelo governo francês, pois a origem da sua família encontrava-se na Toscana. Imaginem por último esse menino em uma academia militar frequentada somente pela nobreza francesa. Pronto, estão postas as condições para o assédio de um aluno que destoava daqueles que o rodeavam. Esse menino esquisito chamava-se Napoleão Buonaparte, filho de Carlo e Letícia, italianos antes de 1768 e franceses depois.

    E assim ocorreu durante os cinco anos em que Napoleão passou em Brienne, antes de seguir para a École Militaire em Paris. Conforme o trecho que abre este artigo, pelo fato de ter todas as características mencionadas acima, o jovem Napoleão sofreu gozações o tempo todo e isso o levou a refugiar-se nos estudos e nos livros, a desconfiar de todos, a ser sempre triste e às vezes ter pensamentos suicidas e a ver o mundo como conspirando contra ele. Foi seu primeiro contato com a crueldade, a violência, a covardia das pessoas que se unem para eleger um bode expiatório, em suma com a natureza humana tal como ela é, independente dos ideais cultivados pela sociedade. O que motivava seus colegas a tratar o jovem corso assim? Seria a falta de uma ética religiosa de amor e de respeito mútuos que fosse além da mera aparência dos ritos e dos sacramentos que faziam parte da rotina de todos os membros da Igreja Católica? Seria falta de racionalidade, que os levava a enxergar a vida sob a ótica arbitrária dos seus preconceitos de classe e a dar vazão a seus instintos mais baixos por serem incapazes de controlar suas emoções e atuar de maneira objetiva e justa?

    Qualquer que fosse a razão do bullying, Napoleão Bonaparte acabou tirando suas próprias lições éticas de sua vivência entre a juventude aristocrática francesa da academia militar, seguindo uma terceira via que levava em conta a fragilidade do ideal cristão e do ideal racional a respeito do homem: longe das premissas cristãs de humildade e doação ao próximo; mas longe também das premissas iluministas e racionais sobre uma natureza humana que pode ser transformada pela educação e pelo controle dos desejos, levando ao nascimento de um homem imparcial, controlado, que não faz aos outros aquilo que não quer que façam com ele, a fim de que todos possam viver em paz. A terceira via da moral napoleoniana é a da força e da vontade. Conforme o trecho citado do seu ensaio de 1791, apresentado à Academia de Lyons, o homem bom é o homem forte e com coragem de fazer coisas, indômito frente às dificuldades da vida o homem mau é o homem fraco, incapaz de fazer nada, incapaz de dedicar-se a qualquer empreendimento porque tem medo de tudo.

    De acordo com Will Durant e Ariel Durant, em seu livro “The Age of Napoleon”, o corso de um metro e sessenta e nove de altura foi um precursor da vontade de poder de Friedrich Nieztsche. Conforme o trecho que abre este artigo, Nieztsche considerava como virtuoso todo homem que age autonomamente, confiando em si mesmo e sem depender de ninguém e como homem carente de virtudes aquele que é tímido, incapaz de quaisquer iniciativa e por isso subserviente, pronto para obedecer ao outro que dita as regras porque tem o ímpeto da ação. Nesse sentido, conforme Bertrand Russell explica em “Wisdom of the West”, o filósofo alemão descartava toda moral de fundamento religioso, pois qualquer que seja ela, inclusive e principalmente a cristã, será sempre a moralidade dos escravos, daqueles que são dóceis e se compadecem do sofrimento alheio, não daqueles que atuam no mundo para moldá-lo de acordo com sua vontade e os objetivos que pretende alcançar.

    Assim, para os adeptos do triunfo da vontade, o poder se justifica por si mesmo se ele é exercido em sua plenitude e se seu exercício leva à imposição bem-sucedida da vontade de um indivíduo sobre o outro ou sobre os outros para a construção de algo. O julgamento moral que se pode passar a respeito do exercício do poder não é se ele deu a cada um o que é seu ou contribuiu para a prosperidade e a felicidade de todos, mas se ele foi bem-sucedido, isto é, se a vontade de poder conseguiu o que almejava. Não é de se admirar que os proponentes de tal moralidade sejam indiferentes ao sofrimento de muitos e que Napoleão tenha perseguido seus ideais imperialistas ao custo total entre 3.250.000 e 6.500.000 de mortos, incluindo civis e militares, de acordo com o site Wikipedia. Só na França, as Guerras Napoleônicas, entre 1800 e 1815, ceifaram a vida de 1/60 avos da população, o que teve um efeito nefasto sobre a taxa de natalidade, conforme a Enciclopédia Britânica.

    Prezados leitores, o triunfo da vontade do menino corso assediado em Brienne o fez sobreviver à infância infeliz, a enfurnar-se nos livros para preparar-se para a vida adulta e a prosperar, imprimindo sua marca no mundo. A trajetória de Napoleão, cuja carreira para Friedrich Nietzsche foi a única justificativa para o sangue derramado durante a Revolução Francesa, exemplifica mais uma vez que o poder não pode ser exercido de acordo com princípios cristãos. É preciso impor sua vontade ao outro, sem se preocupar com as consequências, mas com foco intenso na concretização dos planos.  A questão permanece, no entanto: como lidar com os efeitos colaterais dos empreendimentos bem-sucedidos? A moralidade da vontade de poder não nos dá tais respostas. Mas é inegável que ela permite ao indivíduo sobreviver e triunfar frente aos seus inimigos.

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Confortos e desconfortos aqui e acolá

Em relação a mim, eu admito que eu conheci apenas um Deus – o Deus de todo o mundo e da justiça… O homem no campo acrescenta a essa concepção… porque sua juventude, sua masculinidade e sua velhice devem ao padre seus pequenos momentos de felicidade… Deixe-o com suas ilusões. Ensine-o se quiser… mas não deixe que os pobres tenham medo de que possam perder a única coisa que os ligam à vida.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando George Jacques Danton (1759-1794), político francês que atuou durante a Revolução Francesa

O ateísmo é aristocrático. A ideia de um grande Ser que vela pela inocência e pune o crime triunfante é basicamente a ideia do povo […] Essa noção […] liga-se somente a ideia de um Poder incompreensível, do terror dos malfeitores, o esteio e conforto da virtude.

Trecho retirado do livro “The Age of Napoleon”, escrito por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) citando Maximilien de Robespierre (1758-1794), político francês que atuou durante a Revolução Francesa

De maneira mais abrangente, este relatório também descreve os impactos em cascata que levam a mortes indiretas, causados pelas operações militares de Israel em Gaza e na Cisjordânia. Ele examina o impacto sobre a saúde da população causado pela destruição da infraestrutura pública, das fontes de subsistência, pelo acesso reduzido a cuidados de saúde, à água e ao saneamento e pelos danos ambientais. Por exemplo, 96% da população de Gaza (2,15 milhões de pessoas) enfrenta níveis agudos de insegurança alimentar. De acordo com a carta de 2 de outubro de 2024 apresentada ao Presidente Biden por um grupo de médicos americanos, 62.413 pessoas em Gaza morreram de inanição.

Trecho retirado do Resumo do relatório intitulado “The Human Toll: Indirect Deaths from War in Gaza and the West Bank, October 7, 2023 Forward” publicado pelo Watson Institute for International & Public Affairs da Universidade Brown

    Prezados leitores, venho abordando a Revolução Francesa ao longo das últimas semanas. Na primeira semana de outubro, em “Pontos de inflexão – os paralelogramos de Gibbon”, falei sobre o conjunto de fatores que presentes concomitantemente criaram as condições suficientes para sua eclosão. Na semana passada, em “Onde estão os novos porteiros”, falei como a exploração de um veículo relativamente novo de comunicação, a imprensa escrita, foi responsável pela criação das narrativas que sustentaram o movimento revolucionário, a luta dos bons, o “povo”, contra os maus, representados basicamente pela nobreza e pelo clero, que gozavam de privilégios seculares. Nesta semana, retomarei essa dicotomia para explorar as visões de mundo que se digladiavam no século XVIII e lançar luz sobre nossas próprias dicotomias, em pleno século XXI.

    É verdade que havia diferentes grupos sociais que disputaram o poder na França desde 1789 até a tomada do poder por Napoleão em 1799, os quais tinham diferentes visões sobre como organizar as instituições econômicas e políticas. No entanto, ignorando as nuances das respectivas teorias, podemos com certeza dividir a sociedade francesa do final do século XVIII em dois campos ideológicos. Um deles, ligado às tradições, considerava que a fé religiosa era no final das contas o único apoio que o indivíduo tinha vivendo em um mundo ininteligível, sem significado e trágico. O outro, aberto à experimentação, considerava que a religião era uma superstição que atrapalhava o caminho rumo à razão e à liberdade.

    Assim, para os experimentalistas revolucionários, a combinação da razão e da liberdade permitiria tentar novos modos de organização da sociedade que estabeleceriam uma nova ética nas relações humanas, não fundada no medo das coisas invisíveis e na esperança vã de uma vida eterna melhor, mas na busca pela diminuição do sofrimento das pessoas e pelo aumento da felicidade. Uma moral racional, livre de preconceitos e de noções de superioridade e de inferioridade irredutíveis trariam a igualdade, a justiça e, portanto, melhoraria a vida da maioria das pessoas.

    Ora, esse caminho rumo ao paraíso na terra era ceifado de dificuldades, pois não havia escolhas fáceis. No campo econômico era preciso garantir a todos que pudessem comer e para isso que o preço dos alimentos fosse acessível para a população mais pobre. O que fazer? Estabelecer preços máximos para os produtos? Se assim fosse feito, os agricultores não teriam estímulo para produzir. Por outro lado, se os preços fossem liberados, os comerciantes poderiam auferir grandes lucros se retivessem as mercadorias para vendê-las no futuro a preços maiores, quando a demanda fosse maior. Num e noutro caso, a decisão a ser tomada para enfrentar o problema da oferta e da demanda e de como equilibrá-las implicava enfatizar um aspecto em detrimento do outro.

    Um governo de inclinação burguesa liberaria os preços para incentivar a produção e a criação de riquezas. Um governo de inclinação popular controlaria os preços para diminuir as desigualdades criadoras de ressentimentos. Seria possível destrinchar o problema apelando à razão? Haveria uma única razão, imparcial, objetiva, unívoca que viabilizasse uma resposta categórica? Ou haveria uma ponderação dos interesses em jogo e no final das contas uma decisão arbitrária sobre que interesses privilegiar com base na correlação de forças políticas?

    Tanto Danton, que foi ministro da Justiça e membro do Conselho Executivo de agosto de 1792 até 1793, quanto Robespierre, o principal nome do Comitê de Salvação Publica a partir de julho de 1793 até sua execução em julho de 1794 reconheciam que na prática o reino da prosperidade para todos que tornaria a religião inútil não era algo simples de ser conquistado. Daí as observações desses dois homens sobre a função da religião, citadas na abertura deste artigo. Se as desigualdades e as injustiças, o sofrimento, o trabalho duro, a doença não podem ser eliminados da face da Terra, é preciso crer que em outra dimensão um Ser com poderes absolutos punirá os maus e recompensará os bons. Do contrário, como ter motivação para viver se o indivíduo, por sua posição na escala social e econômica é vítima desses males constantemente? Não crer em Deus é um luxo dos privilegiados, que têm mais condições materiais de remediar os sofrimentos que os acometem e portanto não precisam recorrer a entidades sobrenaturais que façam o serviço de justiçamento que é impossível de ser concretizado no mundo real.

    É neste ponto que salto três séculos, dos sans-culottes que sofriam com a carestia na França do século XVIII, para os palestinos, que estão sendo lentamente dizimados, em pleno século XXI. O relatório cujo trecho é citado na abertura deste artigo descreve os detalhes da exterminação gradual e segura, causada pelo bloqueio de ajuda humanitária, pela destruição das redes de esgoto e de abastecimento de água, pela destruição dos hospitais, pela proliferação de doenças causadas pela sujeira e pelo enfraquecimento do sistema imunológico devido à falta de comida. No século XXI, os ideais iluministas da razão e da liberdade como veículos do progresso são veiculados pelo Direito Internacional. Afinal, é o Direito Internacional que estabelece regras de convivência entre os diferentes países para que um não tente impor sua vontade ao outro de maneira arbitrária, é o Direito Internacional que estabelece o modo como os países devem conduzir operações bélicas de maneira a minimizar danos a populações civis.

    Ora, o direito internacional até agora falhou redondamente na guerra entre Israel de um lado, e Hamas e Hezbollah, de outro, que se iniciou em 7 de outubro. Civis estão sendo trucidados em nome do combate ao terrorismo islâmico e seu direito à integridade física está sendo constantemente solapado pelos bombardeios israelenses incessantes, pela dificuldade de atuação das equipes da Organização das Nações Unidas na Palestina. E por que o direito internacional falhou? Por que não é possível elaborarmos coletivamente um argumento racional para diminuir o sofrimento das pessoas e aumentar a felicidade geral de todos os que habitam a região? Será porque o Oriente Médio é palco de disputas geopolíticas que só levam a uma ponderação de interesses sem que seja possível chegar a uma conclusão imparcial sobre o que fazer? Será porque a religião é utilizada por um e por outro lado para motivar as pessoas e dar uma pátina de moralidade às disputas de poder entre fundamentalistas islâmicos e judeus?

    Enquanto isso, prezados leitores, talvez diante da perspectiva de sofrimento infindável para os palestinos, seja melhor eles recorrerem ao conselho de Danton e se apegarem à única coisa que os liga à vida: a fé. Se a razão é inviável e não leva à justiça, à paz e à felicidade, é melhor que os palestinos, dormindo ao relento, passando fome e frio, morrendo lentamente sem cuidados médicos e fugindo das bombas sonhem com um Ser supremo que vingará os oprimidos.

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